O bloco Mulheres Rodadas, do carnaval não oficial do Rio, é um dos que retiraram do repertório letras polêmicas -Tânia Rêgo/Agência Brasil |
Blocos do carnaval não oficial do
Rio de Janeiro, formados por músicos amadores, que se reúnem sem horário e
trajeto pré-definidos, pretendem deixar de fora da folia, este ano, marchinhas
incômodas. Influenciados pela crescente mobilização de mulheres, que tocam ou
desfilam nesses blocos, principalmente de mulheres negras, o repertório passou
a ser questionado, com a intenção de evitar canções que possam sugerir alguma
forma de preconceito ou violência.
"Se a gente prestar atenção,
[no trecho de] O Teu Cabelo Não Nega: 'Porque és mulata na cor/ Como a cor não
pega, mulata/ Mulata, eu quero o teu amor', está claro o racismo. Cor não é
doença, não é contagiosa", criticou a artista visual e percussionista que
acompanha o tema, Amora*. Ela toca há mais de dois anos em blocos e fanfarras
do circuito marginal e tem participado de protestos de músicos, parando de
tocar, quando alguém ameaça puxar as canções.
A discussão vem desde o ano
passado, quando musicistas alertaram para letras que poderiam ser consideras
racistas, misóginas e transfóbicas (que discriminam pessoas trans), reflexo da
mobilização de defensores de direitos humanos e de movimentos sociais. Entre
elas, o funk Baile de Favela, do MC João, e tradicionais marchinhas de
carnaval, como O Teu Cabelo Não Nega, de Lamartine Babo, citada por Amora, ou
Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly. Este ano, na abertura do carnaval não
oficial, em janeiro, musicistas se recusaram a tocar Mulata Bossa Nova, de
Kelly, alegando que a palavra mulata é pejorativa, por se referir à mula,
etimologicamente. Na ocasião, elas foram até expulsas da área dos músicos.
"O que está em questão, mais
do que a etimologia das palavras, é o papel da mulher no carnaval", disse
Ju Storino, percussionista e integrante do Coletivo Feminista Todas por Todas.
"Onde está a voz da mulher no carnaval? Quando pedimos para que nos ouçam,
para que não toquem, muitos fazem ouvido de mercador ou reproduzem mais
violência contra quem questiona. Como vamos fazer carnaval sem parceria, sem
parceria com o puxador?", perguntou. Ela lembrou que, por serem
preconceituosas, de tempos em tempos, o carnaval retoma a polêmica, que passa
ainda por composições sendo levadas por movimentos sociais à Justiça. "A
discussão não é nova. Quem não vê problema é quem nunca foi vítima".
Um dos blocos que excluíram
canções depois da polêmica foi o Vem cá, minha Flor. "Percebemos que algumas
são racistas, machistas, preconceituosos, acabavam constrangendo ou agredindo
pessoas, então, pelo sim e pelo não, a gente preferiu banir", explicou um
dos fundadores do bloco, que reúne entre 60 e 80 ritmistas, Edu Machado.
Segundo ele, foram decisões
difíceis e nem sempre unânimes. "Cortamos Baile de Favela, que era a
música do momento, em 2016, mas que tem uma questão agressiva. Mas outras que
eu continuaria tocando, como Cabeleira do Zezé, que muitos gays não veem
problema, também saem". O trecho controverso é o verso imperativo
"corta o cabelo dele", que pode ser interpretado como violência a
travestis.
Para o professor universitário e
percussionista André Videira de Figueiredo, que toca em pelo menos cinco
blocos, como o Carimbloco, de música paraense, e a Fanfarra Tupiniquim
Amostrado, a horizontalidade do carnaval não oficial, além dos protestos das
musicistas, vem estimulando reflexões. Para resolver, ele sugere que os blocos
escutem os grupos incomodados com as letras. "Não vou discutir se [a
música] Mulata Bossa Nova é uma homenagem ou discriminação. A ofensa é um
sentimento, só pode dizer que algo é ofensivo quem se sentiu ofendido, não é o
ofensor que tem que ser convencido, ele apenas tem que ser informado",
afirmou o antropólogo.
Autor de marchinhas controversas,
o compositor João Roberto Kelly defende suas composições. Ele diz que nunca
teve a intenção de ofender nenhum grupo e que suas canções foram feitas para
incentivar a brincadeira. "Estamos falando de músicas que são sucesso há
40, 50 anos. O povo gosta de cantar, de dançar, de ouvir". Ele lembra
canções como Maria Sapatão que, quando lançadas, desmistificavam preconceitos.
E cantou: "O sapatão está na moda/O mundo apladiu/ É um barato, é um
sucesso/ Dentro e fora do Brasil. Isso é um elogio", disse.