| Área de garimpo ilegal em que Ibama desativou máquinas de mineração na Terra Indígena Munduruku, no Pará, em maio de 2018 (créditos: Vinícius Mendonça/Ibama, em licença CC BY-SA 2.0, via Flickr) |
Apesar de já terem se
passado cinco anos da publicação do ato administrativo que prevê a
informatização do sistema de controle da cadeia econômica do ouro no Brasil, a
medida e o sistema ainda não saíram do papel. Graças a isso, o país permite que
a prática de fraudes no setor seja bastante fácil, e que a investigação das
ilegalidades se torne um obstáculo quase intransponível, demonstram ações
judiciais e manual de atuação elaborados pelo Ministério Público Federal (MPF).
No Brasil, para fraudar
uma transação ilegal do comércio de ouro basta ter dois itens vendidos em papelarias:
uma caneta e uma nota fiscal avulsa. Então é só inserir dados falsos no
documento. Esse cenário extremamente favorável ao crime permitiu, por exemplo,
que mais de 4,6 mil aquisições ilegais de ouro fossem feitas durante três anos
por apenas um dos 67 postos oficiais de compra direta do minério extraído em
garimpos no país. Só entre 2015 e 2018, o grupo fraudou a compra de 610 quilos
do minério, causando um prejuízo de R$ 70 milhões à União.
Ao mesmo tempo em que
proporciona um campo fértil e rentável para a prática das ilegalidades, o
padrão arcaico do atual sistema de controle da cadeia do ouro impede que os
crimes possam ser investigados com rapidez. Enquanto que fraudes em outras
cadeias econômicas são detectadas automaticamente pelos sistemas eletrônicos de
controle, como acontece na cadeia econômica da madeira, no caso do ouro o
espaço temporal entre a ocorrência e a constatação de um delito pode ser de
anos.
A investigação do
sistema criminoso no posto de compra da empresa Ourominas em Santarém (PA)
exemplificou essa dificuldade. Para detectar as fraudes, primeiro foi preciso
que o MPF conseguisse autorização judicial para a quebra do sigilo fiscal da
empresa e para a busca e apreensão dos papéis. Depois, o MPF e a Polícia
Federal (PF) tiveram que construir do zero um banco de dados eletrônico por
meio da digitação das informações de toda a documentação das 4,6 mil transações
realizadas entre 2015 e 2018.
Em seguida, foi
necessário interrogar diversos vendedores de ouro e detentores de autorizações
de exploração de lavras. Foi preciso, ainda, requisitar e analisar contratos de
parcerias e procurações, verificar os lançamentos registrados em relatórios
anuais de produtividade das lavras, e periciar as áreas para onde haviam sido
emitidas permissões de lavras, inspecionando mudanças no uso do solo, retirada
da cobertura vegetal, presença de equipamentos de extração mineral, entre
outros quesitos. Por fim, as equipes do MPF e da PF tiveram que desenvolver uma
metodologia de cruzamentos dos dados para, só então, conseguir identificar as
irregularidades.
Precariedades e
dificultadores – Somada a uma série de omissões da ANM também descritas nas
ações ajuizadas pelo MPF em maio e julho deste ano e em manual de atuação
elaborado pela força-tarefa Amazônia do MPF, a falta de informatização dos
documentos e das rotinas de controle da cadeia econômica do ouro no Brasil
torna esse controle precário do começo ao fim, o que complica a investigação
dos crimes e impede que essa apuração possa dimensionar as ilegalidades de
maneira exata.
Como para a expedição
de autorização de exploração da lavra – a chamada Permissão de Lavra Garimpeira
(PLG) –, não há obrigatoriedade de pesquisa prévia – estudo que indicaria, por
exemplo, o tamanho da jazida, os métodos a serem empregados para a extração e a
produtividade esperada –, não é possível saber se a jazida de uma determinada
área de extração autorizada teria capacidade, de fato, de fornecer determinada
quantidade de ouro declarada pelo posto de compra.
Os contratos de
parceria entre os mineradores não são informatizados, fazendo com que seja
difícil, para as autoridades, apurar se determinado vendedor teria de fato
contrato com um detentor de PLG, o que permitiria ao vendedor a realização do
transporte e da venda do minério.
Também não é possível
consultar uma PLG e identificar à primeira vista todos os garimpeiros que
possuem contrato de parceria para transportar o ouro extraído dessa lavra. Além
disso, a não obrigatoriedade de inserção dos contratos de parceria em um
sistema informatizado permite ao posto de compra forjar contratos fraudulentos,
conforme demonstraram as ações do MPF.
Como não é eletrônica a
nota fiscal de aquisição do ouro – atualmente, o único registro da origem do
ouro adquirido –, os órgãos de controle não têm acesso direto às informações
sobre as transações nos pontos de compra. Para esse acesso é necessária quebra
de sigilo fiscal e busca e apreensão da documentação. Ou seja: enquanto não for
instalado um sistema informatizado, as autoridades não podem fazer a
conferência, em tempo real, da legalidade das transações.
“Por exemplo, só após a
quebra do sigilo fiscal do Posto de Compra de Ouro (PCO) da Ourominas em
Santarém foi possível descortinar que o ouro extraído ilegalmente do entorno da
Terra Indígena Zo'é, em Óbidos, foi declarado como tendo origem em PLG
localizada em Itaituba”, registra o MPF nas ações judiciais.
Como os relatórios de
produção das jazidas, chamados de Relatório Anual de Lavra (RAL), não são
devidamente fiscalizados pela ANM – muitas vezes são entregues com dados
incompatíveis com a quantidade de minério indicada em notas fiscais, e a
agência não toma as devidas providências –, e como os contratos de parceria não
são lançados em um sistema informatizado de controle, para comprovar as fraudes
é preciso coletar depoimentos dos detentores de PLGs e dos vendedores, o que
dificulta uma investigação em larga escala.
Na ausência do sistema
informatizado, os volumes declarados nas notas fiscais de aquisição de ouro
precisam ser confrontados manualmente com a produção da jazida declarada no
RAL, e não há um mecanismo de alerta sobre transações suspeitas ou bloqueio de
créditos para transações, como há para o comércio da madeira, controlado por
ferramentas eletrônicas, como o Documento de Origem Florestal (DOF) e o Sistema
de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais (Sisflora).
Porque não há um
controle informatizado sobre o transporte no minério – como, por exemplo, as
guias florestais, obrigatórias para o transporte da madeira –, os garimpeiros
que possuam contrato de parceria com determinado detentor de PLG podem utilizar
essa autorização para “esquentar” (acobertar a origem ilegal de) todo e
qualquer ouro que porventura extraiam de garimpos ilegais, sendo essa mais uma
prática criminosa de difícil comprovação.
A ausência de controle
informatizado, desde a extração até o primeiro comprador, permite que PCOs e
Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) “esquentem” o ouro
ilegal adquirido com o simples lançamento aleatório de um número de uma PLG
“guarda-chuva” nas notas fiscais de aquisição, como ocorreu em larga escala no
posto de compra citado nas ações ajuizadas pelo MPF.
A não implantação do
sistema informatizado também não permite que se saiba, por exemplo, qual é o
destinatário final do ouro ilegal adquirido, dificultando a responsabilização
solidaria (corresponsabilização) de todos os envolvidos.
A não informatização –
e sua consequente falta de transparência –, também dificulta, por exemplo, a
possibilidade de criação de um selo de certificação que auxilie o cidadão a
realizar o consumo consciente do minério. Diferente do que ocorre no ramo
madeireiro, por exemplo, que conta com certificações como a do Forest
Stewardship Council (FSC), atualmente quem compra ouro não tem nenhuma garantia
de que aquele minério tenha origem legal. Consequentemente, o comprador pode
estar alimentando involuntariamente um mercado criminoso.
A legislação prevê a
criação de um sistema de certificação de reservas e de recursos minerais. O
sistema deveria servir para subsidiar a formulação e implementação da política
nacional para as atividades de mineração, fortalecer a gestão dos direitos e
títulos minerários, consolidar as informações relativas ao inventário mineral
brasileiro, definir e disciplinar os conceitos técnicos aplicáveis ao setor
mineral, entre outras funções. No entanto, o sistema ainda não está criado.
À Justiça Federal em
Santarém o MPF pediu que a ANM seja obrigada tanto a normatizar o Sistema
Brasileiro de Certificação de Reservas e Recursos Minerais, nos termos da lei
nº 13.757/2017, quanto a informatizar todos os procedimentos relativos à
compra, venda e transporte do ouro, em obediência à portaria nº 361/2014 da
agência.
Série – Desde a semana
passada o MPF está publicando uma série de notícias para resumir como as várias
fragilidades do sistema de controle da cadeia do ouro possibilitam a atuação de
organizações criminosas como a denunciada pela instituição e geram prejuízos
financeiros, sociais e ambientais de proporções devastadoras.
Também estão sendo
descritos os pedidos feitos pelo MPF à Justiça relativos às instituições
públicas e às empresas processadas.