![]() |
Mapa com localização das terras indígenas no Pará (em laranja) e processos minerários (em vermelho). Fonte: ações do MPF |
O Ministério Público Federal (MPF)
ajuizou oito ações nesta última semana de novembro com pedidos urgentes para
que a Justiça Federal cancele processos minerários incidentes em 48 terras
indígenas no Pará. Também foi pedido que a Agência Nacional de Mineração (ANM)
indefira todos os processos atuais nessas áreas e os que surgirem antes do
cumprimento das exigências legais para a autorização da atividade, que incluem
a necessidade de consentimento das comunidades.
A Constituição e as leis estabelecem que
qualquer medida administrativa que possa levar à autorização da atividade
minerária nessas áreas só pode ser tomada depois que houver oitiva
constitucional das comunidades sobre o decreto legislativo autorizador,
autorização do Congresso Nacional, consulta prévia, livre e informada às
comunidades relativa à autorização administrativa, e regulamentação legal.
De acordo com manifestação da ANM ao
MPF, a agência considera que a falta de lei regulamentadora não impede que os
processos minerários sejam sobrestados, ou seja, abertos e colocados em espera.
Para os procuradores da República que assinam as ações, no entanto, o simples
registro, cadastramento e sobrestamento desses processos – ainda que não
deferidos ou mesmo apreciados – contraria a Constituição Federal e a Convenção
nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é lei no Brasil e
garante o direito à consulta prévia, livre e informada.
Segundo levantamento feito pela
organização Instituto Socioambiental (ISA) por solicitação do MPF, o Pará tem
um total de 2.266 processos minerários incidentes em terras indígenas, números
maiores que, pelo menos, outros seis dos nove estados da Amazônia Legal (o
levantamento não incluiu Amazonas e Amapá, ficando restrito aos dados do Acre,
Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins).
No total, nesses seis estados da
Amazônia atualmente existem 3.347 processos, registrados em áreas de 131 terras
indígenas inseridas nas diferentes fases do processo de regularização fundiária
(identificadas e delimitadas, declaradas e homologadas).
Os processos minerários incidentes nas
48 terras indígenas no Pará citados nas ações ajuizadas esta semana pelo MPF
são referentes a áreas localizadas nas circunscrições da Justiça Federal nos
municípios de Altamira, Belém, Castanhal, Itaituba, Paragominas, Redenção e
Santarém. Investigação semelhante relativa às terras indígenas localizadas na
circunscrição da Justiça Federal em Marabá está em andamento.
Impactos políticos – Além de violar a
legislação, a prática do sobrestamento produz impactos políticos concretos,
alerta o MPF nas ações. Sobre isso, os procuradores da República no Pará
signatários das ações citam decisão do juiz federal Lincoln Rossi da Silva
Viguini, que em junho deste ano acatou pedido do MPF e determinou o indeferimento
de todos os pedidos de mineração em terras indígenas no Amazonas.
“(...) a prática de suspensão dos
processos não apenas viola o citado dispositivo como ainda cria sério problema
sob o ponto de vista ético e constitucional do processo legislativo de regulação
da mineração em terras indígenas. Os direitos de preferência indevidamente
assegurados em relação a terras indígenas acabam por incitar grupos de
interessados que podem exercer influência sobre a futura regulação. Estão sendo
elencados, por ordem de preferência, detentores de direito cuja existência não
é reconhecida, tudo com lastro exclusivo na indevida suspensão dos processos
administrativos. O DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral, atual ANM],
com sua conduta, tem fomentado expectativas de direito e provável lobby sobre a
regulação por parte daqueles que, no momento, não contam com outra coisa que
não seja um processo suspenso”.
Impactos socioambientais – O MPF também
destaca a ocorrência de impactos socioambientais resultantes do sobrestamento
de processos minerários em áreas indígenas, onde os requerimentos minerários
são utilizados para conferir uma aparente legitimidade à exploração minerária
ilegal – sobretudo à garimpagem. “Para além de estimular o lobby, o
sobrestamento gera insegurança jurídica aos indígenas e transforma as terras
indígenas em reservas minerárias”, criticam os procuradores da República.
Como exemplo desses impactos, o MPF cita
garimpo ilegal flagrado em zona intangível de proteção integral da Terra
Indígena Zo'é, na região do baixo Amazonas, noroeste do Pará. A investigação
demonstrou que a área explorada coincidia com os polígonos de quatro processos
minerários pendentes de apreciação pela ANM, requeridos justamente pelos
autointitulados donos do garimpo. Em ação judicial, o MPF informou que os
impactos causados são de mais de R$ 350 mil.
“É certo que os processos minerários não
produzem, por si sós, os danos socioambientais, mas integram um feixe de
‘documentos’ que conferem aparência de legalidade à atividade. Esses documentos
são utilizados in loco para garantir a detenção sobre a área do garimpo,
recrutar trabalhadores, contratar serviços e até mesmo ludibriar os indígenas”,
relata o MPF nas ações.
Inviabilidade jurídica – Na ausência de
regulamentação sobre a exploração em terras indígenas, a ANM tem decidido
sobrestar os procedimentos minerários com base no Código de Mineração. No entanto,
o código trata de áreas consideradas livres, não de terras indígenas, e, se
vier a ser publicada regulamentação, poderão ser adotados procedimentos
diferentes dos existentes no código, explica o MPF.
E, mesmo que os procedimentos gerais do
Código de Mineração fossem mantidos para a análise de pedidos relativos a
terras indígenas, ainda assim as normas hoje vigentes teriam que ser adaptadas
ao estabelecido pela Constituição, tratando do direito à consulta livre, prévia
e informada, à participação nos resultados da lavra e à reparação do dano
ambiental, complementam os procuradores da República.
Relativamente a esse tema, além de
voltar a citar a decisão liminar (urgente) da Justiça Federal no Amazonas, as
ações dos procuradores da República no Pará cita sentenças de juízes federais
no Amapá e Roraima que acataram pedidos semelhantes feitos pelo MPF nesses
estados.
“Ao decidir pelo sobrestamento e não
enfrentar o ônus da negativa, ao não desconstituir a sua ‘fila’ de futuros
exploradores de minério em terra indígena, o DNPM colocou os povos indígenas do
Estado do Amazonas em situação de insegurança jurídica, sob a pressão de que os
interessados detentores de preferência venham a exercer o seu direito. O caso é
nitidamente de aplicação do direito dos povos indígenas de não ser turbado por
preferências e loteamento de suas terras para mineração se não há marco legal
nem tampouco autorização do parlamento. Em suma, por essas razões centrais, o
sobrestamento dos processos pelo DNPM é ilegal”, decidiu o juiz federal Lincoln
Rossi da Silva Viguini.
Na mesma linha, o juiz federal Rodrigo
Parente Paiva Bentemuller havia registrado, em sentença publicada em 2014 pela
Justiça Federal no Amapá, que “(…) o sobrestamento por tempo indefinido faz
perpetrar-se no tempo o direito de preferência dos requerentes sobre terra que
sequer podem ser objeto de atividade minerária”. Também em 2014, sentença da
juíza federal Clara da Mota Santos Pimenta Alves em processo ajuizado pelo MPF
em Roraima, apontou: “Não há direito constitucional de exploradores de minério
em terra indígena que não possa ser sacrificado e que tenha que ser contido
através do paliativo do sobrestamento de processos.”
Violação de direitos – A Convenção nº
169 da OIT determina que os governos devem consultar os povos interessados
sempre que sejam previstas medidas administrativas que possam afetá-los, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos acrescenta que a consulta deve
ocorrer desde a fase de planejamento do projeto, plano ou medida, com suficiente
antecedência ao começo das atividades de execução, e a Corte Interamericana,
por sua vez, esclarece que a consulta deve ocorrer desde as primeiras etapas de
planejamento da proposta, e não unicamente quando surja a necessidade de
aprovação da comunidade, de modo a permitir que os grupos participem e
influenciem a tomada de decisão.
Por isso, para o MPF o ato
administrativo de sobrestamento dos processos minerários em terras indígenas,
ao gerar direito de preferência, afeta diretamente os povos indígenas que nelas
habitam e, portanto, não poderia ser editado sem consulta prévia, livre e
informada. Apesar de o requerimento e o sobrestamento dos processos minerários
não serem, por si sós, exploração minerária, são os primeiros de uma série de
atos que, ao final, poderão resultar na autorização de lavra minerária ou
garimpeira, observam os procuradores da República nas ações.
“Além da pressão (lobby) pela
relativização da proteção legal conferida às terras indígenas e de os
requerimentos serem utilizados para conferir aparente legitimidade à atividade
ilegal, o direito de preferência retira a possibilidade de os próprios
‘superficiários’ (indígenas) terem prioridade na exploração; de participarem,
por exemplo, da escolha dos permissionários/autorizados/concessionários dos
processos minerários de acordo com histórico de boas práticas junto a
comunidades locais; e convalidam a enorme concentração de processos minerários
nas mãos pouquíssimos titulares”.
Em relação a esse tema, o estudo do ISA
apontou que os 2.266 processos minerários sobrepostos a terras indígenas no
Pará estão na mão de apenas 495 titulares. “A concentração de processos
minerários nas mãos de poucos titulares representa monopólio, reforça a
existência do lobby exercido por grupos econômicos capitalizados com grande
poder de pressão política, e estimula a especulação e comercialização de
títulos minerários (muitos dos requerimentos são feitos por pessoas físicas,
sem qualquer demonstração de capacidade técnica para realizar a lavra
minerária)”.