Indígenas relataram 30 anos de sofrimentos (foto: Helena Palmquist - Ascom MPF/PA) |
No que definiu como uma “medida
de abertura do direito à experiência da vida”, o juiz federal Hugo Frazão, da
subseção judiciária federal de Tucuruí, abriu nesta sexta-feira (04) a primeira
audiência judicial feita na região dentro de uma terra indígena, na aldeia
Trocará, dos índios Assurini. “Assumo o compromisso de me deixar tocar e
convencer pelos argumentos de vocês”, disse. A audiência foi solicitada pela
procuradora da República Thais Ruiz, atualmente responsável pela ação judicial
– que já tramita há oito anos – em que o Ministério Público Federal (MPF) busca
compensação e reparação pelos danos sofridos pela etnia Assurini com a
construção da usina hidrelétrica de Tucuruí, há trinta anos.
“Este ato, por si só, já é uma
vitória da comunidade indígena e da sociedade brasileira, já que o respeito à
pluralidade étnica é um dos objetivos da República consagrados na Constituição
Federal”, disse a procuradora da República, ressaltando que entre as várias
etnias que sofreram graves impactos da usina construída no período da ditadura
militar, os Assurini estão entre as que não receberam qualquer tipo de compensação
ou mitigação. "Trinta anos não são 30 dias, nem 30 minutos”, disse Waremoa
Assurini, ao resumir a inconformidade dos indígenas com a demora do Estado
brasileiro em reconhecer e reparar os danos provocados pela política de
desenvolvimento.
Durante quatro horas, os
indígenas apresentaram ao juiz federal, representantes de órgãos públicos,
pesquisadores e estudantes de universidades da região um pouco das memórias que
têm desses 30 anos. Sem consulta e sequer aviso, no final da década de 1970, os
Assurini foram surpreendidos pela intensa movimentação de pessoas ao longo do
médio curso do rio Tocantins, assim como as explosões de fortes luzes criadas
pelas obras da hidrelétrica. Durante as obras, relatam a perda de uma aldeia,
de muitas roças de mandioca e milho, com o desaparecimento de um tipo ancestral
de cultivo de milho e do peixe jaraqui, muito importante para a alimentação da
comunidade. A mudança na região, com a população do município de Tucuruí
saltando de 10 mil para 70 mil pessoas, provocou ao longo dos anos pressões
sobre a terra indígena, com altos índices de desmatamento, introdução de
doenças sexualmente transmissíveis, fome, epidemias e um grave problema de
desnutrição infantil que perdura até os dias de hoje.
O cacique Cajuangawa Assurini
explicou em língua indígena, com tradução posterior, que “ninguém avisou da
barragem”. “Quando encheu, a água levou tudo: motor, remédio, farinha, arroz,
máquina. A Eletronorte tinha que pagar, estamos cansados de esperar”. “Os
velhos viram um monte de gente andando na beira do rio, ouviam as explosões,
mas não sabiam o que ia acontecer. Perderam as castanhas, as mandiocas, os
milhos, as batatas, a máquina de arroz, a maior parte do seringal que ficava na
beira do rio. Nunca conseguimos de volta o que tínhamos antes e até hoje,
andando na beira do rio, continuam os impactos. A erosão provocada pela
barragem levou cemitérios do nosso povo e continua comendo o nosso território.
Os velhos não conseguiram mas nós ficamos com essa responsabilidade e nós vamos
bater o pé e conseguir o nosso objetivo”, disse a jovem liderança Pirá
Assurini, filho do cacique.
A Eletronorte chegou a ser
obrigada a fazer um pagamento mensal de R$ 150 mil pela demora em oferecer
qualquer medida de compensação, a partir de 2012, mas depois conseguiu reverter
os valores em medidas emergenciais. Hoje, as lideranças indígenas cobraram
prestação de contas dessas medidas e do quanto foi aplicado nisso. O
representante da Eletronorte, o advogado Bernardo Fosco, disse que a empresa
não se nega a dialogar com os indígenas, mas admitiu que as incertezas
provocadas pela crise econômica do país, assim como a possível privatização da
estatal, dificultam o avanço das propostas de compensação.
Raimundo Santos Assurini,
liderança responsável pelo atendimento a saúde da comunidade, acusou a empresa
de nunca ter ouvido os indígenas. “O que estamos propondo é para amenizar, não
para resolver. Porque o que perdemos aqui não tem como ser reposto”, afirmou.
Oliveira Assurini, outra liderança, reforçou: "Como compensar o jaraqui,
os seringais, o rio que a gente não pode mais pescar, nem tomar banho porque
está tudo contaminado? Isso não tem preço, não tem programa que compense".
O pesquisador Juliano de Almeida avisou os representantes da empresa que eles
precisam refletir sobre suas práticas e sobre o que chamam de diálogo. “A
Eletronorte vem aqui e conversa, mas parece só ouvir o que lhe interessa”,
disse. Carlos Segatti, representante regional da Fundação Nacional do Índio
(Funai), reforçou que não há dinheiro no mundo que pague o que os Assurini
sofreram e perderam, mas que se pode amenizar os problemas se for encontrada
uma solução judicial.
O processo judicial que discute
as reparações, já demorado, chegou a um impasse com a apresentação de duas
propostas de compensação, uma feita pela própria comunidade indígena, outra
apresentada pela Eletronorte, responsável pelos danos. Ao final da audiência
judicial, o juiz Hugo Frazão comunicou a criação de uma comissão
interinstitucional, com a presença de pesquisadores e representantes de várias
instituições, assim como da comunidade indígena, para analisar as duas
propostas apresentadas.
A comissão terá prazos definidos
para trabalhar e apresentar, até o final do primeiro semestre de 2018, uma
proposta independente de compensação, que agregue elementos das duas
existentes. O juiz comunicou as partes, o MPF e a Eletronorte, de que podem
acompanhar os trabalhos da comissão e devem se manifestar sem necessidade de
intimação judicial, de acordo com os prazos estabelecidos na audiência
judicial. Com isso, disse Frazão, o processo será bem mais acelerado. Ele
prometeu uma decisão final até setembro de 2018.
Processo nº
0000406-42.2018.4.01.3907 – 1ª Vara da Justiça Federal em Tucuruí (PA)