MPF defende obrigatoriedade de consultar povos afetados por empreendimentos hidrelétricos na Amazônia. Foto: Helena Palmquist/Ascom-MPF/PA |
Cancelada há pouco mais de um ano
pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, a usina de São Luiz do Tapajós
voltará a ser julgada na Justiça, por ter desrespeitado o direito de consulta
prévia, livre e informada dos povos que seriam atingidos pelo empreendimento. A
discussão jurídica sobre a consulta prévia, prevista na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) é considerada atrasada no Brasil,
em comparação com outros países da América Latina onde o direito já é
reconhecido pelas cortes superiores.
No caso de São Luiz do Tapajós, o
Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública exigindo respeito à
consulta e foi vitorioso na primeira instância da Justiça Federal. O governo
brasileiro recorreu e agora esse recurso deve ser julgado no Tribunal Regional
Federal da 1a Região (TRF1), em Brasília. O MPF apresentou essa semana seus
argumentos para que a sentença de primeiro grau seja mantida.
Apesar do cancelamento da usina,
o debate sobre o direito de consulta prossegue no judiciário, principalmente
porque o governo brasileiro nunca realizou uma consulta, em nenhum dos
empreendimentos que promove, causando danos muitas vezes irreversíveis a povos
que deveriam ser efetivamente protegidos conforme prevê a legislação nacional e
internacional. O MPF acompanha atualmente 12 processos judiciais que tratam do
direito de consulta em diversos empreendimentos, todos com decisões favoráveis
tanto na primeira, quanto na segunda instância.
“Em que pesem os sucessivos
reconhecimentos em primeira e segunda instâncias, é preciso que
o Poder Judiciário internalize os
padrões internacionais estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos”, alerta o MPF, que lembra que em outros países do continente, como
Bolívia, Colômbia, Peru, Chile e México, a discussão jurídica sobre a consulta
prévia está bem mais avançada, com decisões das cortes superiores reconhecendo
a obrigatoriedade. No Brasil, as decisões de segunda instância, sobretudo no
TRF1, são mais recentes e o tema só foi debatido colateralmente pelo Supremo
Tribunal Federal, no caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
O primeiro caso de consulta prévia que deve chegar ao STF é o que trata da
consulta da usina de Belo Monte, nunca realizada.
Na peça em que pede a confirmação
da obrigatoriedade da consulta para a usina São Luiz do Tapajós, o procurador
da República Camões Boaventura lembra que, durante muito tempo, povos
indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais foram concebidos
pela legislação nacional e internacional como incapazes de tomar suas próprias
decisões. “Partia-se da noção de que estes grupos deveriam ser progressivamente
integrados e “assimilados” à sociedade nacional, pois estariam em um estágio
prévio em termos de evolução social”, no que ficou conhecido como paradigma
integracionista ou tutelar.
Foi a Convenção 169 da OIT que
mudou o paradigma internacional e estabeleceu o respeito à diversidade étnica e
cultural como bases da relação entre os estados nacionais e os povos abrigados
em seus territórios. No Brasil, a Constituição de 1988 também marca um
rompimento com a maneira anterior de tratar esses povos, ao reconhecer sua
“organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. Nos dois
documentos, o direito dos povos à autodeterminação é a pedra fundamental do
respeito às diferenças e, no caso da Convenção 169, cria-se um instrumento
específico para a aplicação desse direito, que é a consulta prévia, livre e
informada.
Para o MPF, trata-se de criar
condições para tornar o pluralismo político uma realidade na democracia
brasileira. A consulta prévia, argumenta, pode fazer ver o que não era visto,
permitir a manifestação do dissensso, contrapor mundos sensíveis e formas
diversas de se relacionar com a natureza e com o território. É, portanto, um
direito fundamental por excelência.
Direito fundamental
Na peça enviada como resposta ao
recurso do governo, o MPF assinala que o regime democrático, embora represente
um governo do povo, não se convundo com um “maioritarismo”, no qual os grupos
políticos dominantes podem impor suas vontades aos grupos minoritários. “A
democracia possui uma dimensão contramajoritária que consiste justamente na
imposição de limites à atuação das maiorias políticas”, diz o procurador Camões
Boaventura. Nesse sentido é que a consulta prévia se constitui em um direito
que se relaciona diretamente com outros direitos fundamentais como à
propriedade coletiva, à cultura, à vida, à integridade espiritual e à
sobrevivência.
Sem a consulta prévia, diz o MPF,
“as posições políticas dos grupos culturalmente diferenciados eram simplesmente
invisibilizadas, mesmo porque historicamente o sistema representativo sempre
se mostrou ineficaz no que diz
respeito à participação política das minorias étnicas”. Por isso, trata-se de
assegurar o “espaço de concretização do pluralismo político, na medida em que
propicia que diferentes visões de mundo se confrontem na arena pública (estatal
e empresarial às perspectivas identitárias dos povos indígenas e tribais, por
exemplo), possibilitando a emergência de visões e perspectivas acerca das
medidas administrativas e/ou legislativas previstas”.
O julgamento sobre a consulta
prévia de São Luiz do Tapajós ainda não tem data confirmada.
Processo nº
3883-98.2012.4.01.3902