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Área de garimpo ilegal em que Ibama desativou máquinas de mineração na Terra Indígena Munduruku, no Pará, em maio de 2018 (créditos: Vinícius Mendonça/Ibama, em licença CC BY-SA 2.0, via Flickr) |
Uma investigação inédita para esmiuçar o
funcionamento de uma das maiores empresas compradoras de ouro no maior polo da
mineração ilegal no Brasil, a bacia do Tapajós, no sudoeste do Pará, resultou
em um retrato do completo descontrole do país sobre essa cadeia econômica,
responsável por prejuízos financeiros, sociais e ambientais de proporções
devastadoras.
Coletadas durante três anos pelo Ministério
Público Federal (MPF) e pela Polícia Federal (PF), uma série de provas do
quanto é frágil a regulamentação e a execução do papel fiscalizador do Estado
foram reunidas em duas ações propostas pelo MPF à Justiça Federal em Santarém
em maio e julho deste ano.
Uma ação, na área criminal, foi ajuizada contra
os responsáveis por um posto de compra de ouro da empresa Ourominas em
Itaituba, acusados de formarem uma organização criminosa para fraudar
documentação e, assim, “esquentar” (acobertar) a origem clandestina do ouro. Só
entre 2015 e 2018, o grupo fraudou a compra de 610 quilos do minério, causando
um prejuízo de R$ 70 milhões à União.
A outra ação, na área cível, foi proposta contra
a Agência Nacional de Mineração (ANM), a União, o Banco Central, o posto de
compra e a Ourominas. Nessa ação o MPF cita, pela primeira vez, trechos de um
manual de atuação da instituição para o combate à mineração ilegal. O documento
foi elaborado pela força-tarefa Amazônia do MPF, integrada por procuradores da
República de todos os estados da região, que fizeram um diagnóstico aprofundado
sobre os problemas, indicando soluções para a questão.
Procedimentos de controle arcaicos – Como ainda
não contam com um sistema informatizado, os procedimentos atuais para o
controle da compra, venda e transporte do ouro são um campo fértil para
fraudes.
As notas fiscais são preenchidas manualmente, à
caneta. O máximo de tecnologia exigido pela legislação para a confecção dos
documentos da cadeia do ouro é a máquina de escrever e o papel-carbono. As
notas fiscais em papel ficam estocadas com os compradores. Não há nota fiscal
eletrônica, não há acesso automático às informações pelo poder público, e muito
menos cruzamento de dados.
A atividade garimpeira sequer é definida de modo
claro na legislação, permitindo que a atuação de uma empresa mineradora de
porte industrial tenha seus impactos considerados equivalentes à atividade de
um garimpeiro artesanal.
Não há limites para a emissão de autorizações de
exploração de lavra: uma mesma pessoa ou cooperativa pode ser detentora de
quantas permissões de lavra conseguir registrar em seu nome.
Também não há controle sobre o uso das permissões
de exploração, facilitando muito o “esquentamento” do ouro clandestino. As
permissões continuam em vigor mesmo que as áreas não tenham sido exploradas, ou
que seus detentores não apresentem relatórios de produção, ou que apresentem
relatórios zerados ou incompatíveis com a quantidade de minério indicada em
notas fiscais.
A legislação prevê a criação de um sistema de
certificação de reservas e de recursos minerais. No entanto, o sistema ainda
não está criado. Houve consulta pública no final de 2018, e a avaliação das
propostas está a cargo da ANM.
O sistema deveria servir para subsidiar a
formulação e implementação da política nacional para as atividades de
mineração, fortalecer a gestão dos direitos e títulos minerários, consolidar as
informações relativas ao inventário mineral brasileiro, definir e disciplinar
os conceitos técnicos aplicáveis ao setor mineral, entre outras funções.
Riquezas saqueadas – A Amazônia brasileira já tem
mais de 450 áreas ou pontos de mineração ilegal, registra o relatório Amazônia
Saqueada, publicado no final do ano passado por pesquisadores da Rede Amazônica
de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg).
Só na bacia do Tapajós são comercializadas
ilegalmente 30 toneladas de ouro por ano – R$ 4,5 bilhões em recursos não
declarados –, seis vezes mais que o comércio legal na mesma região, segundo
informações apresentadas pela ANM em audiência pública realizada em abril deste
ano na Câmara dos Deputados.
Envenenamento em massa – De acordo com laudo
elaborado pela PF e pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), nas
águas do Tapajós a mineração ilegal de ouro despeja, a cada 11 anos, o
equivalente à barragem da Samarco que rompeu em Mariana (MG) em 2015,
destruindo a calha do rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo.
Há estimativas de que até 221 toneladas de
mercúrio são liberadas por ano para o meio ambiente pela mineração ilegal no
Brasil, indicam estudos preliminares apresentados em 2018 na primeira reunião do
Grupo de Trabalho Permanente da Convenção de Minamata sobre Mércurio
(GTP-Minamata), realizada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).
A Convenção de Minamata é um acordo global para
controlar o uso do mercúrio, tendo em vista a letalidade da substância para a
saúde humana e para o meio ambiente. Em agosto de 2018 foi publicado decreto
presidencial que concluiu a internalização jurídica, pelo Brasil, da Convenção.
Com a promulgação do decreto, as determinações da Convenção de Minamata
tornaram-se compromissos nacionais oficiais.
O mercúrio envenena principalmente quem trabalha
em áreas de mineração ou vive perto delas, como povos indígenas e comunidades
ribeirinhas, além da população consumidora do pescado. No ser humano, a
substância afeta o sistema nervoso central, causando problemas de perda de
visão, de ordem cognitiva e motora, doença cardíaca e outras deficiências.
Urgência sanitária – Na região do Tapajós já
foram detectadas alterações cardiológicas e neurológicas em pessoas que têm
alto nível de metilmercúrio, relatou na audiência da Câmara dos Deputados o
neurocirurgião Erick Jennings Simões, da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai) do Ministério da Saúde.
Ele destacou que não há cura para esses problemas
originados pela contaminação por mercúrio, e que no Tapajós as pesquisas
indicaram que a contaminação tem afetado até mesmo moradores de áreas urbanas
distantes da região de garimpo, como os moradores de Santarém, um dos
municípios mais populosos do Pará, com cerca de 300 mil habitantes.
Uma das lideranças indígenas presentes na
audiência pública, Alessandra Korap, da etnia Munduruku, denunciou que as
crianças estão reclamando de dores e que as mulheres grávidas estão sofrendo
abortos espontâneos, algo que não acontecia nas aldeias. Segundo o
neurocirurgião Erick Jennings, o metilmercúrio consegue atravessar a placenta,
podendo causar danos irreversíveis ao feto.
Para pesquisadores do Ministério da Saúde e da
Ufopa ouvidos por deputados federais, é “urgência sanitária” o monitoramento clínico
e laboratorial das populações submetidas à contaminação de mercúrio na bacia do
Tapajós.
Invasão originou ação – A mineração ilegal é um
dos principais vetores de invasões a áreas protegidas, como Terras Indígenas e
Unidades de Conservação (UCs). A investigação que deu origem às ações ajuizadas
pelo MPF em Santarém, por exemplo, começou a partir das operações Dakji I e II,
realizadas em 2016 para combater garimpagem ilegal de ouro na zona de
amortecimento da Terra Indígena Zo'é, no município de Óbidos. A zona de
amortecimento é uma área de proteção integral.
As operações deram origem a três inquéritos
policiais. Em um deles, investigados que atuavam na área conhecida como garimpo
Pirarara, na zona de amortecimento da Terra Indígena, relataram que vendiam o
minério à Ourominas sem a necessidade de apresentar qualquer tipo de
comprovante de legalidade da origem do produto.
Interditados nas operações, os garimpos ilegais
foram sucessivamente reocupados por novas levas de garimpeiros, agora em 2019
pela terceira vez. “Este fato denota a dificuldade em se combater a extração
ilegal de ouro tão somente a partir do exercício do poder de polícia ambiental
in loco nos ‘garimpos’ ilegais. Esta ação civil pública busca promover um
reenquadramento da problemática, impelindo os entes públicos a também exercerem
sua atribuição regulatória e fiscalizatória sobre elos da cadeia que até então
operam à margem do olhar estatal: os compradores de ouro ilegal”, explica o MPF
na ação cível.
A ação cível foi assinada pelos procuradores da
República Camões Boaventura, Paulo de Tarso Moreira de Oliveira, Ana Carolina
Haliuc Bragança, Patrícia Daros Xavier e pelo assessor jurídico do MPF Rodrigo
Magalhães de Oliveira. A denúncia criminal foi assinada pelos mesmos membros do
MPF autores da ação cível, além dos procuradores da República Hugo Elias Silva
Charchar e Antônio Augusto Teixeira Diniz.
Impactos em série – Além dos prejuízos
financeiros bilionários para o país, dos graves riscos à saúde da população, e
das invasões a áreas protegidas, a mineração ilegal estimula uma série de
outros problemas socioambientais: desmatamento ilegal – que já eliminou 20% da
cobertura vegetal original da floresta amazônica –, assoreamento de rios,
grilagem (usurpação de terras públicas), conflitos agrários, trabalho
insalubre, trabalho escravo, tráfico de pessoas e exploração sexual, doenças
como malária, leishmaniose, e as sexualmente transmissíveis (DSTs), entre
outras consequências.
Na prática – Nas próximas semanas, o MPF vai
publicar uma série para resumir como as várias fragilidades do sistema de
controle da cadeia do ouro possibilitaram a atuação da organização criminosa
denunciada pela instituição.
Também serão descritos os pedidos feitos pelo MPF
à Justiça relativos às instituições públicas e às empresas processadas.
O conteúdo integral das ações, com todos os
detalhes disponíveis, já pode ser acessado nos links abaixo.
Ação cível: processo nº 1003404-44.2019.4.01.3902
– 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)