O Ministério Público Federal (MPF)
encaminhou nesta segunda-feira (02) recomendação a autoridades para que sejam
instaurados procedimentos para apurar relatos de tortura, maus tratos e
tratamento desumano, cruel e degradante por integrantes da Força-Tarefa de
Intervenção Penitenciária (FTIP) ou outros agentes públicos no complexo
penitenciário de Americano, no município de Santa Izabel (PA), na região
metropolitana de Belém. Se forem confirmadas as denúncias, o MPF recomenda a
responsabilização administrativa dos culpados.
A recomendação foi encaminhada ao
diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Fabiano
Bordignon, ao coordenador institucional da FTIP no Pará, Maycon César Rottava,
e ao secretário Extraordinário de Estado para Assuntos Penitenciários no Pará,
Jarbas Vasconcelos.
O documento estabelece prazo de 15 dias
para resposta, contados da data do recebimento. O MPF aguarda resposta sobre o
acatamento ou não da recomendação e sobre as providências concretas
efetivamente tomadas para resolução das questões apontadas, ou, em caso de
acatamento parcial, quais serão os itens não acatados, informando, em qualquer
hipótese de negativa, os respectivos fundamentos, juntando toda documentação
pertinente.
Além de recomendar a responsabilização
administrativa dos culpados no caso de as denúncias serem confirmadas, o MPF
abriu investigações para apurar eventuais responsabilidades nas áreas cível e
criminal.
As denúncias – Desde o início de agosto,
quando a FTIP passou a atuar no presídio, o MPF vem recebendo denúncias de
mães, companheiras de presos, presos soltos recentemente, membros do Conselho
Penitenciário e membros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que fiscalizam o
sistema penitenciário. Os relatos narram uma série de atrocidades.
Entre elas, denúncias de que os presos
vêm sofrendo violência física pelos agentes federais, pois estão apanhando e
sendo atingidos por balas de borracha e spray de pimenta, de modo constante,
frequente e injustificado, mesmo após muitos dias da intervenção, e sem que
tenha ocorrido indisciplina dos presos.
Os presos, registram os denunciantes,
também vêm sofrendo violências morais pelos agentes federais, como ameaças,
intimidações, humilhações, demonstrações excessivas de poder e controle (como
ordem dos agentes federais para ficarem imóveis e em silêncio absoluto, pelo
que, por impossível, apanham), de modo constante, frequente e injustificado,
mesmo após muitos dias da intervenção, e também sem prévia indisciplina dos
presos.
Também há declarações de que os detentos
não estariam sendo alimentados (veem comida chegando, mas não é distribuída,
dizem os denunciantes), ou que são alimentados em quantidade e qualidade aquém
da mínima essencial, sem qualquer diferenciação da alimentação para diabético,
hipertensos e doentes, e sofrem privação de água, apontam as denúncias.
Há relatos, ainda, de falta de
assistência à saúde, mesmo no caso de presos feridos com balas de borracha, ou
lesionados por causa da violência física dos agentes federais, com privação de
medicação e tratamento, inclusive nos casos de pessoas com deficiência, HIV e
tuberculose.
Informações enviadas ao MPF também
apontam que os condenados estão em locais sem condições mínimas de salubridade
e higiene, com ratos, superlotação em nível de desmaio e sufocamento, dormindo
no chão.
Os detentos foram privados ou recebem
quantidade insuficiente de materiais de higiene pessoal, são obrigados a ficar
nus ou somente de cueca, descalços, molhados, e alguns não podendo sair do
lugar sob pena de violência, sujos pelas necessidades fisiológicas, citam os
denunciantes.
Também há relatos de que os presos estão
incomunicáveis, sem acesso não somente a visita de familiares, mas também de
advogados, membros da OAB no exercício da fiscalização do sistema
penitenciário, e de integrantes do Conselho Penitenciário.
Legislação – A recomendação do MPF
destaca várias normas que proíbem a prática de atos como os relatados. A
primeira citação é da Constituição da República, que determina que “ninguém
será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e que “é
assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
A Convenção Contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – Decreto nº 40 de
15/02/1991 estabelece que “em nenhum caso poderão invocar-se circunstâncias
excepcionais (…) ou qualquer outra emergência pública como justificação para
tortura”. A mesma convenção determina que as autoridades competentes procederão
imediatamente a uma investigação imparcial, e que serão tomadas medidas para
assegurar a proteção do queixoso e das testemunhas.
A lei 9.455/97 (crime de tortura) define
que constitui crime de tortura submeter alguém, sob sua guarda, poder ou
autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento
físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter
preventivo. A pena é de reclusão de dois a oito anos. Na mesma pena incorre
quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico
ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante
de medida legal. Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o
dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro
anos.
Lei 4.898/65 estabelece que constitui
abuso de autoridade submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a
constrangimento não autorizado em lei, e o Código Penal prevê punição para
lesão corporal, lesão corporal de natureza grave, omissão de socorro,
maus-tratos, constrangimento ilegal, associação criminosa, condescendência
criminosa e violência arbitrária, lembra o MPF.
O MPF também cita trechos da lei
12.850/13 (organização criminosa), lei 8.429/92 (improbidade administrativa),
lei complementar nº 75/93 (organização, as atribuições e o Estatuto do
Ministério Público da União), a resolução nº 14, de 11 de novembro de 1994, do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que fixa regras
mínimas para o tratamento do preso no Brasil, e a a lei 8.906/94 (Estatuto da
Advocacia).
Protocolo de Istambul – Na recomendação
é citado, ainda, o Protocolo de Istambul, Facultativo à Convenção contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado
em 18 de dezembro de 2002. O protocolo considera a Regra de Mandela – conjunto
de regras mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos.
Entre as regras, estão a que estabelece
que a disciplina e a ordem devem ser mantidas, mas sem maiores restrições do
que as necessárias para garantir a custódia segura, e a que determina que em
nenhuma hipótese devem as restrições ou sanções disciplinares implicar em
tortura ou outra forma de tratamento ou sanções cruéis, desumanos ou
degradantes.
Sanções disciplinares ou medidas
restritivas não devem incluir a proibição de contato com a família. O contato
familiar só pode ser restringido por um prazo limitado e quando for
estritamente necessário, diz outra das regras ressaltadas.
O uso de instrumentos restritivos que
são inerentemente degradantes ou dolorosos devem ser proibidos, e outros
instrumentos só devem ser utilizados quando previstos em lei e em
circunstâncias específicas.
Quando a utilização de instrumentos
restritivos for autorizada, os instrumentos restritivos serão utilizados apenas
quando outras formas menos severas de controle não forem efetivas para
enfrentar os riscos representados pelo movimento sem a restrição; o método de
restrição será o menos invasivo necessário, e razoável para controlar a
movimentação do preso, baseado no nível e natureza do risco apresentado; e os
instrumentos de restrição devem ser utilizados apenas durante o período exigido
e devem ser retirados, assim que possível, depois que o risco que motivou a
restrição não esteja mais presente.
As revistas íntimas e inspeções serão
conduzidas respeitando-se a inerente dignidade humana e privacidade do
indivíduo sob inspeção, assim como os princípios da proporcionalidade,
legalidade e necessidade, ordena outra regra.
As revistas íntimas e inspeções não
serão utilizadas para assediar, intimidar ou invadir desnecessariamente a
privacidade do preso, e, para os fins de responsabilização, a administração
prisional deve manter registros apropriados das revistas íntimas e inspeções.
O MPF destaca, ainda, que, segundo o
Protocolo de Istambul, revistas íntimas invasivas, incluindo o ato de despir e
de inspecionar partes íntimas do corpo, devem ser empreendidas apenas quando
forem absolutamente necessárias.
Alegações de tortura ou tratamentos ou
sanções cruéis, desumanos ou degradantes deverão ser apreciadas imediatamente e
devem resultar em uma pronta e imparcial investigação. Os presos devem ter a
oportunidade, tempo e meios adequados para receberem visitas e de se comunicaram
com um advogado de sua própria escolha ou com um defensor público, sem demora,
interceptação ou censura, em total confidencialidade, sobre qualquer assunto
legal, em conformidade com a legislação local. Tais encontros podem estar sob
as vistas de agentes prisionais, mas não passíveis de serem ouvidos por estes,
determinam outros trechos do protocolo destacados pelo MPF.
Ainda conforme a Regra de Mandela, todo
preso deve ter o direito, e a ele devem ser assegurados os meios para tanto, de
informar imediatamente a sua família, ou qualquer outra pessoa designada como
seu contato, sobre qualquer doença ou ferimento graves, e os indivíduos
designados pelo preso para receberem as informações sobre sua saúde devem ser
notificados pelo diretor em caso de doença grave ou ferimento.
Não obstante uma investigação interna, o
diretor da unidade prisional deve reportar, imediatamente, o ferimento grave à
autoridade judicial ou a outra autoridade competente, independente da
administração prisional; e deve determinar a investigação imediata, imparcial e
efetiva sobre as circunstâncias e causas de tais eventos. A administração
prisional deve cooperar integralmente com a referida autoridade e assegurar que
todas as evidências sejam preservadas.
Essa obrigação de reportar as
informações às autoridades deve ser igualmente aplicada quando houver indícios
razoáveis para se supor que um ato de tortura ou tratamento ou sanção cruéis,
desumanos ou degradantes tenha sido cometido na unidade prisional, mesmo que
não tenha recebido reclamação formal, registra o protocolo.
Os funcionários das unidades prisionais
não devem, em seu relacionamento com os presos, usar de força, exceto em caso
de autodefesa, tentativa de fuga, ou resistência ativa ou passiva a uma ordem
fundada em leis ou regulamentos. Agentes que recorram ao uso da força não devem
fazê-lo além do estritamente necessário e devem relatar o incidente
imediatamente ao diretor da unidade prisional.
Devem haver inspeções externas
conduzidas por órgão independente da administração prisional, e os inspetores
devem ter autoridade para escolher livremente qual estabelecimento prisional
deve ser inspecionado, inclusive fazendo visitas de iniciativa própria sem
prévio aviso, e quais presos devem ser entrevistados; e para conduzir entrevistas
com os presos e com os funcionários prisionais, em total privacidade e
confidencialidade, durante suas visitas.
Esforços devem ser empreendidos para
tornar os relatórios de inspeções externas de acesso público, excluindo-se
qualquer dado pessoal dos presos, a menos que tenham fornecido seu
consentimento explícito. A administração prisional ou qualquer outra autoridade
competente, conforme apropriado, indicará, em um prazo razoável, se as
recomendações advindas de inspeções externas serão implementadas, determina
outra das regras destacadas pelo MPF.