SBPC aponta novas violações de direitos no retorno dos ribeirinhos expulsos por Belo Monte


Audiência pública em Altamira: violações de direitos se acumulam na instalação da usina de Belo Monte. Foto: Letícia Leite/Instituto Socioambiental
O Ministério Público Federal (MPF) vai partir das conclusões de um estudo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) para propor às autoridades federais e à Norte Energia S.A mudanças no tratamento dado pela Norte Energia S.A aos ribeirinhos do Xingu expulsos pela usina de Belo Monte. Uma das principais conclusões do relatório da SBPC é que a maneira como a empresa vem conduzindo o processo não garante condições para a reprodução da vida ribeirinha. O relatório foi entregue ao MPF em audiência pública em Altamira na semana passada e afirma premissas que devem ser seguidas para o retorno dos ribeirinhos à área do reservatório de Belo Monte.

No processo de deslocamento compulsório provocado pela usina, se acumularam injustiças e violações de direitos e o modo de vida tradicional de boa parte da população foi ignorado. As irregularidades já haviam sido denunciadas em julho de 2015, quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) chegou a suspender a retirada dos moradores das margens do Xingu. Em novembro de 2015, a usina recebeu a licença de operação, incluindo uma condicionante para que fosse garantido o modo de vida dos ribeirinhos. Um ano depois, a constatação da SBPC é que não há essa garantia. 

“Existe um vazio nesse processo de Belo Monte. Há um grupo, os ribeirinhos, que, embora sejam símbolo dos rios da Amazônia, foram invisíveis ao licenciamento da usina. Não é possível acreditar que esse processo vai ser corrigido se a mesma empresa que em 2015 expulsou os ribeirinhos do rio, passa a se utilizar das mesmas referências e ainda assume a prerrogativa de definir o que é ser ribeirinho e o que ele precisa para reconstruir sua vida”, diz a procuradora da República Thais Santi.

O relatório da SBPC, intitulado “Estudo sobre o deslocamento compulsório de ribeirinhos do rio Xingu provocado pela construção de Belo Monte”, avalia as remoções provocadas pela usina, detecta vários problemas e aponta mudanças necessárias. As irregularidades verificadas antes da licença de operação continuam se repetindo. As conclusões foram apresentadas pelas coordenadoras do estudo, Manuela Carneiro da Cunha (Universidade de São Paulo) e Sônia Magalhães (Universidade Federal do Pará) na audiência pública promovida pelo MPF em Altamira, com a presença da presidente do Ibama, Ana Suely Azevedo

Foi apresentada parte da história dos beradeiros do Xingu (como são conhecidos os ribeirinhos), as transformações ocorridas pela instalação de Belo monte, tanto pela expulsão como pela mudança dos ecossistemas após o barramento do rio. Há críticas à prática da Norte Energia de assentar os ribeirinhos em áreas de preservação permanente (APP) nas margens do rio, sem aquisição de novas áreas, o que excluiu muitos moradores de retornar ao Xingu. 

Os estudos da SBPC detectaram também um grave risco de conflitos se o processo continuar sem mudanças, tanto com fazendeiros donos de grandes propriedades próximas ao rio, como também entre os próprios ribeirinhos: há muitos casos de beiradeiros retirados pela Norte Energia que viram as áreas onde sempre moraram serem entregues a terceiros. De acordo com o relatório, a premissa básica do processo de reassentamento dos ribeirinhos terá que dar um giro de 180 graus: o princípio do autorreconhecimento, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, deverá ser cumprido e não pode caber à Norte Energia apontar quem tem direito aos beiradões e ilhas do Xingu. 

Outro caminho apontado no relatório é a necessidade de uma área contígua além das áreas de APP nas margens, em que os moradores tradicionais tenham oportunidade de reconstituir a vida ribeirinha, com recomposição de áreas degradadas e fortalecimento dos grupos e acesso a serviços públicos essenciais. A proposta é de criação de um território ribeirinho, iniciativa inédita no reconhecimento dos direitos dessas populações amazônicas. Todas as propostas apresentadas na audiência pública foram discutidas com os próprios ribeirinhos. 

A audiência pública teve a participação de mais de 800 pessoas, a maioria ribeirinhos, pescadores e indígenas com vários depoimentos de injustiças cometidas pela empresa no processo de deslocamento. Moradores das ilhas e beiradões do Xingu há décadas, famílias inteiras foram retiradas sem direito a novas terras e removidas para casas na cidade, onde é impossível para pescadores conseguirem o sustento. Muitas famílias retornaram por conta própria às margens do rio, depois que o reservatório da usina encheu. Algumas estão acampadas até hoje. 

A determinação de quem é ribeirinho deverá passar a partir de agora por um conselho ribeirinho, formado pelos próprios moradores. Esse conselho também poderá indicar áreas para reocupação. Um grupo de trabalho interinstitucional com instituições de estado e de governo vai apoiar a implementação das decisões do conselho ribeirinho. “Ninguém além do ribeirinho pode dizer quem é ribeirinho, principalmente quando sequer se estudou seu modo de vida”, reforçou o representante do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Francisco Nóbrega. A presidente do Ibama, Ana Suely Azevedo, vai receber o relatório para análise e providências. 

O relatório sobre o deslocamento compulsório dos ribeirinhos afetados por Belo Monte foi realizado pela SBPC com o apoio do MPF e do Instituto Socioambiental (ISA). O documento é composto de 3 partes: a primeira trata da vida dos moradores antes da construção da hidrelétrica; a segunda é um diagnóstico da situação atual, tanto do ponto de vista ambiental quanto social, trazendo as violações cometidas no processo de deselocamento compulsório; e a terceira apresenta propostas para o reconhecimento dos direitos dos ribeirinhos e dos princípios que devem nortear o retorno deles ao rio. Quando o material for enviado às autoridades, a íntegra deverá ficar disponível também no site do MPF.

Participaram da audiência pública em Altamira, além de MPF, SBPC, Ibama, Isa e CNDH, representantes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Agência Nacional de Águas (ANA), Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Secretaria de Patrimônio da União (SPU), Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE), Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), Secretaria Especuial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça (SDH) e Defensoria Pública da União (DPU).

* Ministério Público Federal no Pará