O Ministério Público Federal (MPF)
encaminhou nesta sexta-feira (22) à Justiça Federal em Marabá (PA) recurso
contra sentença que considerou prescritos os crimes do caso Zé Pereira. Além de
o direito internacional considerar a submissão à escravidão um crime
imprescritível, por ser crime contra a humanidade, o Brasil se comprometeu
internacionalmente a levar os criminosos a julgamento, lembra o MPF no recurso.
Os crimes foram cometidos em Sapucaia
(PA) em 1989, quando José Pereira Ferreira estava com 17 anos. Ele foi
submetido a condições análogas às de escravo, tentou fugir e foi baleado na
cabeça, só sobrevivendo porque fingiu-se de morto ao lado do corpo de outra
vítima dos criminosos. Em 2003, o Brasil comprometeu-se perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – órgão da Organização dos Estados
Americanos (OEA) – a julgar os criminosos.
No último dia 15, o juiz federal Marcelo
Honorato declarou extinta a punibilidade dos três acusados, Augusto Pereira
Alves, José Gomes de Melo e um terceiro, conhecido apenas pelo primeiro nome,
Carlos.
“Os crimes objeto de apuração e
persecução no presente processo são imprescritíveis, e assim eram reconhecidos
antes de sua ocorrência, tratando-se de delitos perpetrados mediante graves
violações de direitos humanos, marcados também pelo fato de a proibição da
escravidão ser norma imperativa de Direito Internacional, de cuja observância
nenhum dos ramos de poder do Estado brasileiro pode se afastar”, ressaltam, no
recurso, os procuradores da República Lucas Daniel Chaves de Freitas e
Alexandre Aparizi.
Risco de comportamento contraditório –
Os membros do MPF também destacam que, tendo em vista que o Brasil se
comprometeu em âmbito internacional a continuar com os esforços para punir os
acusados, deixar de fazer isso tendo como base argumentação baseada apenas na
legislação brasileira seria “insustentável comportamento contraditório e
desarmônico com a própria Constituição Federal, que, por seu caráter
cosmopolita, abre-se a uma interpretação dialógica com os tratados de Direito
Humanos e com o costume internacional nessa matéria”.
De acordo com o MPF, o descumprimento do
compromisso com a CIDH pode gerar responsabilização do Brasil em âmbito
internacional, “tanto pela inobservância de norma jus cogens [norma aceita e
reconhecida pela comunidade internacional de Estados em seu conjunto cuja
determinação não admite acordo em contrário e que só pode ser modificada por
uma norma ulterior de direito internacional geral que tenha o mesmo caráter],
como pelo desrespeito de pactuação específica formulada em acordo de solução
amistosa perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos”.
Ainda segundo os membros do MPF em
Marabá, a manutenção da sentença que declarou extinta a punibilidade dos
acusados representaria nova violação aos direitos humanos, pela inobservância
do dever de investigar e punir, extraído da interpretação conjunta dos artigos
1º, 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Reconhecimento da responsabilidade – O
compromisso com a CIDH foi assumido pelo país em decorrência de o Brasil ter
sido acusado pelas organizações não governamentais Américas Watch e Centro pela
Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) de não ter respondido adequadamente
às denúncias de prática de trabalho análogo à escravidão e de haver
desinteresse e ineficácia nas investigações e processos referentes aos
criminosos.
No decorrer do processo na CIDH o Brasil
reconheceu pela primeira vez sua responsabilidade pela existência de trabalho
escravo no país e também se comprometeu a adotar medidas – incluindo
modificações legislativas – para prevenir e punir outros casos, além de
iniciativas de conscientização sobre o tema.