Embora seja uma decisão que salva vidas,
a doação de órgãos e tecidos para transplante ainda é um tabu em muitas
famílias. No Pará funciona uma rede credenciada de hospitais, com o trabalho de
captação de órgãos realizado pelas comissões intra-hospitalares que atuam nessa
área. Para garantir esse funcionamento, o Estado investe em qualificação
constante dos profissionais que lidam com a abordagem das famílias, a fim de
garantir o êxito desejado.
Atualmente, o Pará realiza transplante
de rim, tecidos oculares (córnea e esclera) e medula óssea em três hospitais em
Belém; um em Santarém, na região Oeste, e outro em Redenção, no Sul.
A captação de órgãos e tecidos ocorre
principalmente em Belém e Santarém, em locais onde é possível fazer os
procedimentos legais, como o Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência,
em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, e os hospitais Regional do
Baixo Amazonas e Municipal de Santarém, instituições que mais fazem doação de
múltiplos órgãos.
Já o Hospital Ophir Loyola, o Instituto
Médico Legal Renato Chaves (IML) e o Hospital Pronto Socorro Municipal Mário
Pinotti, todos na capital, são os locais que mais efetivam doação de córneas no
Estado.
Jair Graim, coordenador da Comissão
Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos do HOL, informa que para fazer
parte todos os membros da comissão passam por treinamento realizado pela
Comissão Estadual de Transplante (CET), vinculada ao Sistema Nacional de
Transplante, do Ministério da Saúde.
"A função da Comissão é a busca
ativa. Todos os dias visita diversas clínicas e setores de urgência e
emergência do hospital para identificar possíveis doadores. No Centro de
Terapia Intensiva, por exemplo, atuamos junto às equipes para que abram
protocolo de morte encefálica, se ocorrer. Também somos acionados por essas
clínicas e pelo próprio banco de olhos, em caso de provável doador",
explica Jair Graim.
Abordagem - É decisiva a sensibilidade
na hora de abordar as famílias que estão perdendo um integrante. "Falamos
da importância da doação, perguntamos se há interesse no gesto. Se a resposta é
positiva, acionamos as equipes de captação e transplante, a fim de facilitar e
fazer o processo correr da maneira mais célere possível. A aceitação ainda não
ocorre dentro do esperado. Às vezes, por fatores religiosos; outras vezes
alegam que a pessoa que perdeu a vida não era favorável à doação, e outros
fatores menores", relata o médico.
Toda essa movimentação gera relatórios
anuais, informando o que foi captado e o que foi doado mês a mês. No HOL, por
se tratar de um hospital oncológico, é extremamente baixa a possibilidade de
captação, que acaba restrita basicamente às córneas. A pandemia de Covid-19
afetou diretamente esse trabalho, já que não se sabe os riscos de transplantar
órgãos e tecidos de quem morreu de Covid-19. Apesar do cenário mais controlado
da pandemia, os transplantes ainda ocorrem em número bem menor.
Missão - De acordo com Ierecê Miranda,
coordenadora da Central de Transplantes da Secretaria de Estado de Saúde
Pública (Sespa), cabe às unidades regionais a missão de conscientizar, captar e
dar prosseguimento ao processo. Todo hospital com acima de 200 óbitos anuais é
obrigado a ter uma Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos,
sejam públicos, privados ou filantrópicos.
"Quando o hospital tem um potencial
doador, e é disponibilizado o centro cirúrgico para que ocorra a captação no
mesmo local onde está o doador, a CET providencia essa captação. O hospital tem
a obrigação de notificar morte encefálica à Central, independentemente da
previsão ou não de doações", acrescenta a coordenadora. Qualquer hospital
pode fazer essa captação em centro cirúrgico, porém a equipe médica envolvida
no ato precisa ter autorização do Ministério da Saúde e da CET.
Em 2019 (antes da pandemia), o Pará
registrou 20 doadores efetivos de órgãos (morte encefálica) e 136 de córnea
(morte circulatória ou de coração parado). Em 2020, esses números caíram,
respectivamente, para quatro e 36, caracterizando uma paralisação quase
completa dos transplantes no Estado.
Retomada - "Foi uma queda de 80%.
Agora estamos vendo uma retomada lenta, que começou em novembro do ano passado.
Mas o que ocorreu foi que praticamente todos os membros das comissões de
transplante foram destacados para atuar no combate à pandemia. E de um modo
geral as pessoas também ainda estão retraídas, porque foram muitas mortes,
muitas perdas com a Covid", confirma Ierecê Miranda.
Quando a morte é circulatória ou de coração
parado, somente as córneas e tecidos oculares, que são avascularizados (sem
vasos sanguíneos), podem ser aproveitados, já que o cérebro, nesta situação,
perde sua funcionalidade. Quando a morte é encefálica ou cerebral, o coração
ainda bate por algum tempo, mas o quadro é irreversível. Nesta situação,
praticamente todos os órgãos podem ser doados - coração, pâncreas, rins,
fígado, pulmão, intestino e outros tecidos, ossos e pele. A reconstituição do
corpo do doador é obrigatória por lei, e a família não consegue visualizar
sinais de que houve a retirada de qualquer órgão.
Quatro etapas - Ierecê Miranda confirma
que o Pará ainda "engatinha" na cultura da doação de órgãos, por isso
é preciso sempre informar aos familiares da pessoa falecida, com o máximo de
clareza, sobre todos os quadros. "Desde quando é identificada, mesmo antes
da abertura do protocolo, a suspeita da morte encefálica, a família deve ser
informada sobre tudo isso. É preciso explicar que se trata de um processo de
quatro etapas, com médicos diferentes e validação da CET. Isso é importante
para que haja o entendimento de que é algo irreversível, para que não haja
dúvidas", reforça.
Palestras e campanhas de conscientização
direcionadas à população de também são necessárias, no entendimento de Ierecê
Miranda. A decisão final pela doação é sempre da família, e por isso a
coordenadora recomenda que se expresse em vida o desejo de doação, para que
essa decisão possa ser tomada da melhor forma possível. "Quando as pessoas
têm as informações corretas, inclusive de que há muitas pessoas na fila do
transplante, que por vezes morrem esperando uma doação que não chega no momento
certo, ficam mais sensibilizadas e doam mais. Sabemos que o paraense é
solidário. O que falta é a informação correta para essa mudança de cultura. Os
profissionais de saúde também precisam ser capacitados para que esse trabalho
possa ser feito. Quando houver um trabalho educativo com a população e
profissionais, com certeza teremos uma mudança de cenários", avalia.