Não há um paraense que resista a
uma tigela de açaí. Acompanhado de farinha, peixe frito, com ou sem açúcar, ele
é base da alimentação e faz parte da cultura local. Porém, essa paixão pelo
fruto símbolo do Pará deixa tanto para o poder público como para a população um
problema complexo: o que fazer com as toneladas do caroço, rejeito do açaí após
a extração do sumo. Há alguns anos, pesquisadores de diversas áreas do conhecimento
tomaram para si a missão de dar um destino proveitoso a esse resíduo. De
produção de energia a tratamento para câncer, passando pela aplicação do
rejeito da fabricação de móveis, o potencial desta semente faz jus à
importância do fruto para o estado.
Um breve passeio pelos bairros
periféricos da capital revela a dimensão do problema. São montanhas de caroço
abandonadas à beira de canais ou dividindo espaço com pedestres pelas calçadas.
Graças a abundancia de chuvas, muitas chegam a germinar, tornando-se pequenas
palmeiras antes de serem finalmente retiradas das ruas. A Associação de
Batedores de Açaí de Belém estima que existam cerca de dez mil pontos de venda
de açaí na região metropolitana. A geração diária de caroço chega a expressivas
16 toneladas todos os dias.
Vale ressaltar que estes dados
levam em conta apenas o consumo da capital e municípios vizinhos. O consumo do
estado inteiro pode elevar estes números às milhares de toneladas ao ano. A
nova Política de Resíduos Sólidos desobrigou as prefeituras de fazer a coleta
dos caroços, transferindo a responsabilidade do despejo aos batedores, que
muitas vezes encontram dificuldades para dar uma destinação correta ao resíduo.
Para tentar mudar este cenário,
pesquisadores da Universidade do Estado do Pará (Uepa) buscam alternativas para
tornar atraente a manipulação do caroço do açaí. Uma delas realizada no
Laboratório de Madeiras do Centro de Ciências Naturais e Tecnologia (CCNT) e
concluída em março deste ano pelas engenheiras florestais, Ana Cláudia Batista
e Elienara Rodrigues.
Orientadas pelo professor doutor
em Engenharia de Recursos Naturais, Marcelo Raiol, a dupla estudou a produção
de carvão vegetal de caroço de açaí, utilizando para isso um forno tipo iglu.
“As propriedades termofísicas do carvão vegetal são diferenciadas quando
produzidas neste tipo de forno. O teor de materiais voláteis, de cinzas, de
carbono fixo e calorífico apresentam vantagens, o que significa que o carvão
tem qualidade superior aos demais”, observa Elienara.
Quando temos um teor de cinzas
menor, o carvão é mais indicado para uso doméstico, industrial e até para a
redução do ferro-gusa, nome dado à matéria-prima do aço. “O minério de ferro é
um óxido e precisa ter esse oxigênio retirado para que possa ser beneficiado. O
carvão vegetal se coloca em posição de vantagem sobre o mineral por não possuir
enxofre. Ao mesmo tempo em que faz a redução do minério de ferro, esse carvão
também vai produzir energia, o que lhe confere uma ampla gama de aplicações”,
acrescenta o professor. A substituição do carvão mineral, combustível fóssil e
finito, é outro objetivo da indústria da mineração.
O forno tipo iglu foi escolhido
não apenas por ter uma queima mais eficiente, mas também porque seria de fácil
reprodução para interessados em investir no carvão de caroço de açaí. “A
construção de um forno iglu é relativamente fácil e requer apenas cimento,
sendo seu formato geométrico o responsável por esta queima mais eficiente. A
pesquisa feita utilizando um forno acessível se aproxima muito mais da
aplicação prática”, avalia Raiol.
O alto rendimento do caroço
enquanto matéria-prima para carvão também foi observado na pesquisa. “Tivemos
uma redução de cerca de 20% da massa após a queima, o que indica o resíduo como
matéria bastante promissora para este fim”, comenta Ana Cláudia. Isso significa
que as emissões de gases – entre eles a água evaporada – são menores se
comparadas a outros tipos de carvão vegetal, além de ter uma queima mais rápida
em relação ao principal concorrente. “O eucalipto, por exemplo, é queimado em
troncos inteiros. Logo, o caroço, que é bem menor, apresenta um processo com
tempo reduzido”, completa.
Ainda assim, se aplicado o método
científico, as emissões de gases para feitura do carvão de açaí se equiparam às
de outros carvões vegetais. Mas já há tecnologia de ponta que possa ajudar a
resolver este problema. ”É o caso do sistema de lavagem do gás ou de
condensação dos fumos, que transforma essas emissões em produtos que podem ser
utilizados na indústria farmacêutica. Isso aumenta o custo, mas o carvão pode,
sim, ser produzido de forma verde”, informa o orientador. Originalmente
francesa, a técnica já é aplicada em alguns países da Europa.
Raiol acredita que em no máximo
10 ou 15 anos, será necessário o plantio de espécies exclusivamente para
obtenção de carvão vegetal. Neste cenário, o caroço de açaí pode ser um aliado,
pois o Pará é produtor, consumidor e exportador nato de açaí. “O consumo de açaí
pode responder por uma boa porcentagem de carvão, pois a geração de resíduos é
bastante alta. Apesar disso, nem que todo o caroço de açaí paraense virasse
carvão, conseguiríamos sustentar, por exemplo, a redução do ferro-gusa em uma
planta. Mas seria uma ajuda valiosa”, ressalta Elienara. Em outras palavras, o
carvão de açaí teria condições de absorver 100% dos resíduos produzidos no
estado.
Apesar de muito se falar sobre as
aplicações industriais do carvão de açaí, o seu uso doméstico também é bastante
recomendado, o que transforma a produção em pequena escala do carvão de açaí em
um negócio viável. “O próprio batedor pode construir um forno para queimar seus
resíduos, aproveitando tudo que o açaí tem para oferecer. O carvão obtido pode
ser vendido ou utilizado em quaisquer outras aplicações dentro da propriedade,
em substituição a outros tipos de carvão vegetal”, aponta Ana Cláudia.
A pesquisa ainda representa os
primeiros passos nessa otimização do resíduo, mas já cumpre um de seus
objetivos principais. “O despejo do caroço de açaí hoje representa um problema
ambiental. O que motivou nossa pesquisa foi conseguir um meio de valorar este
resíduo, para que ele possa ter uma destinação mais adequada e um papel maior
na economia do Pará. Ou seja, ele deixa de ser lixo e passa a ser um produto
com valor comercial”, conclui Elienara.
Móveis
Em Salvaterra, no Arquipélago do
Marajó, o caroço do açaí foi pesquisado sob uma ótica diferente e ganhou outra
utilidade. A partir da coleta dos caroços descartados pelos batedores
artesanais de açaí do município, a pesquisadora Joseane Gonçalves Rabelo
produziu assentos de bancos. A ideia de transformar o resíduo em móveis foi
tema do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da egressa de Tecnologia de
Alimentos da Uepa.
Pouco menos de um quilo do caroço
seco e triturado se transforma em um assento de bancos, inicialmente destinados
a escolas públicas rurais do município, frequentadas normalmente por crianças
carentes. O trabalho foi orientado pela doutora em Engenharia Agrícola,
Carmelita de Fátima Amaral Ribeiro, co-orientado por Núbia Santos, e auxiliado
pelo Técnico de Laboratório Rosivan Matos.
Joseane e Carmelita notaram
também em Salvaterra o acúmulo de resíduos gerados pelos batedores artesanais
que, por não terem nenhum tipo de beneficiamento, acabam ficando acumulados
pelas ruas. “Isso traz poluição. Com o trabalho, a intenção é retirar esses
resíduos, que nada mais são do que lixo depositado nas ruas, promovendo mau
cheiro, atraindo ratos e gerando uma poluição visual cada vez maior”, diz a
orientadora.
A produção do móvel se dividiu
entre a coleta, lavagem e secagem ao sol dos caroços, por um período de 25 a 30
dias. Em seguida, eles foram triturados, peneirados, adicionados à cola branca
e, posteriormente, enformados e prensados. A prensagem ocorreu no Laboratório
de Design do CCNT, em Belém.
O resultado do processo foi uma
chapa de conglomerado, moldada na altura, tamanho e espessura para o assento do
banco usado pelas crianças. As pernas foram produzidas a partir da madeira
típica da região, a Ananin. O banco foi testado até por adultos, que aprovaram
a ideia. Carmelita informa que o material produzido a partir de resíduos
agroindustriais de açaí é extremamente resistente.
“Eles ficaram prontos em menos de
um dia, sendo que tem um tempo a mais de secagem dos materiais para poder
montar. O banco mede aproximadamente 40 x 40 cm², já direcionado para as
crianças. O material tem flexibilidade, durabilidade e pode ser usado na fabricação
de qualquer móvel como mesas, cadeiras, estantes, além de quadros para
paredes”, diz a orientadora.
Para Joseane, seria um sonho
realizado poder produzir o móvel para as crianças em grande escala. Outra
utilização que ela prevê para o aglomerado de açaí seria a produção de bancos
também para as praças de Salvaterra. “A maioria dos bancos de concreto nas
praças estão quebrados, sem falar nos colégios, que muitos não têm. O nosso
produto era um que estava no lixo e hoje podemos reaproveitar”, ressalta.
Câncer
Engana-se quem pensa que o caroço
de açaí tem apenas aplicações físicas para sua massa. Os estudantes do último
ano de Medicina Vitor Nascimento, Jorge Paixão e Carla Lima decidiram
contribuir para a redução do resíduo de forma diferente. Eles testaram a
utilização do extrato obtido do caroço do açaí para o tratamento do câncer.
“Partimos de alguns estudos que apontavam a presença de antioxidantes no
extrato em quantidade até superior àquela encontrada na polpa, mas nenhum
estudo publicado mostrava aplicação dele. Então, decidimos verificar se este
antioxidante conseguiria combater os efeitos neoplásicos em ratos”, resume
Jorge.
A pesquisa, patrocinada pelo
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), começou em 2014,
com a professora doutora em Neurociências e Biologia Celular Kátia Kietzer como
orientadora.
“A ideia de usar o extrato para
melhorar o quadro neoplásico em ratos veio da literatura produzida no
Laboratório de Morfofisiologia, que trabalha muito com os insumos da Amazônia.
A questão da abundância do rejeito foi determinante para que escolhêssemos o
extrato como tema”, revela Vitor.
O extrato do caroço de açaí foi
obtido por meio de uma parceria com o Laboratório de Engenharia Química da
Universidade Federal do Pará (UFPA). O produto resultante do processo de
prensagem é um óleo dissolvido em solução alcoólica, com objetivo de preservar
suas características. O óleo foi então administrado em ratos por via oral,
utilizando a gavagem – método em que o alimento é levado diretamente ao esôfago
do animal. “Como o sabor do extrato não é palatável e nós precisávamos
controlar a dose ingerida, optamos por essa via de administração”, justifica
Carla.
Previamente ao início do
tratamento, a equipe implantou e cultivou um tumor intraperitoneal – dentro da
barriga - nos ratos para avaliar os efeitos anti-neoplásicos do extrato e os
dividiu em grupos com e sem a suplementação. “Tivemos o cuidado de criar um
tumor forte suficiente, para que a ação do extrato pudesse ser melhor
quantificada”, aponta a pesquisadora. O processo inteiro durou um ano.
A análise levou em conta a
síndrome caquética – o processo de enfraquecimento do organismo diante da
doença, como o emagrecimento excessivo, perda de apetite e etc. Os
pesquisadores avaliaram parâmetros bioquímicos nos ratos e o tamanho do tumor.
“Na síndrome caquética tem uma coisa que a gente chama de estresse oxidativo,
que é quando as células começam a produzir muitos oxidantes, que são lesivos.
Então, nossa proposta era de que os antioxidantes presentes no extrato
ajudariam a combater essa reação”, explica Jorge.
A observação dos resultados levou
os pesquisadores a conclusões não previstas. “Não encontramos diferenças
significativas nos parâmetros bioquímicos e na síndrome caquética em si, mas
tivemos uma surpresa ao observarmos a redução na massa tumoral”, diz o
pesquisador. “Concluímos que, sob as condições do experimento, o extrato do
caroço teve mais efeito local sobre o tumor do que o efeito sistêmico, que era
o esperado diante da análise da literatura”, completa Carla.
Trabalho pioneiro com o uso da
semente, utilizada de forma inédita nesta aplicação, deixou diversas hipóteses
a serem exploradas. “Por exemplo, o extrato foi alcoólico. Talvez em outro
veículo tivesse outro efeito. É possível ainda que outro meio de aplicação
traga novos resultados. Enfim, a nossa pesquisa deixou muitos caminhos que
podem ser explorados mais adiante”, pontua Vitor.
O legado produzido por eles fica
para quem prosseguir com este trabalho. “Nossa contribuição principal foi criar
base para outros trabalhos que podem surgir a partir do nosso. O Laboratório de
Morfofisiologia possui uma hoje linha de pesquisa na oncologia e na análise de
plantas amazônicas. Muita coisa boa ainda pode sair daqui”, conclui Jorge.