MPF e MPPA ajuízam ação conjunta para cancelamento das licenças concedidas à Buriti Imóveis em Santarém


Imagem de satélite do Lago do Juá, via Google Earth


O Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) entraram com ação civil pública na Justiça Federal pedindo o cancelamento das licenças concedidas irregularmente à empresa Sisa Salvação (Buriti Imóveis) para construção do residencial Cidade Jardim, em Santarém, oeste do Pará. A ação pede em caráter urgente que a empresa paralise qualquer intervenção na área do empreendimento, inclusive a venda de lotes, até que seja regularizado o licenciamento ambiental junto ao órgão competente, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas).

Os autores da ação pedem ainda o respeito ao direito de consulta prévia, livre e informada, prevista pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para as comunidades de pescadores atingidas e a reparação dos danos socioambientais causados pela empresa que, em 2012, desmatou 186,24 hectares nas proximidades do Juá, lago do rio Tapajós, sem as licenças corretas, uma vez que o licenciamento estava sendo conduzido por órgão municipal, sem competência para tal.

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente e a Prefeitura de Santarém sequer exigiram a apresentação de Estudos de Impacto Ambiental para fazer o licenciamento, o que, para o MPF e o MPPA, torna as duas licenças concedidas (a prévia e a de instalação) totalmente nulas. A ação judicial pede que a Justiça ordene a confecção dos estudos e o licenciamento pelo órgão estadual, pelo alcance dos impactos já provocados.

A empresa pretende construir loteamento urbano às margens da rodovia Fernando Guilhon, nas proximidades do lago do Juá. O residencial Cidade Jardim I possui área de 995.417 m² (99,52 hectares), a qual será dividida em 2.751 lotes. Desses, 1.693 lotes seriam residenciais, e 1.058 comerciais. Embora a empresa tenha recebido em 2017 a licença para construir em área inferior a 100 hectares, os terrenos de sua propriedade totalizam aproximadamente 1.370,58 hectares e são derivados do imóvel chamado “Terreno Rural Salvação”.

E ainda que o município e a Sisa adotem, de imediato, medidas emergenciais de contenção do dano ambiental verificado, de modo a evitar o agravamento do assoreamento do lago do Juá e do rio Tapajós. As medidas devem ser apontadas em perícia a ser determinada pelo Juízo em caráter de urgência, devido ao inicio do período chuvoso na região. Requer que a Secretaria Estadual de Meio Ambiente não emita qualquer licença ambiental ao empreendimento sem que antes sejam realizados: apresentação e avaliação técnica positiva de Eia-Rima; audiências públicas com a sociedade civil; consulta livre, prévia e informada com os pescadores artesanais afetados e mitigação e contenção dos danos socioambientais já verificados.

Ao final requer a confirmação dos pedidos liminares, com a anulação das licenças e autorizações já concedidas, e que o município e a SISA providenciem a reparação integral dos danos socioambientais, de acordo com o que vier a ser apurado em perícia específica a se realizar no curso do processo. Por fim, requer indenização a ser paga pelo município e pela empresa, por danos morais coletivos decorrentes das condutas ilícitas narradas na ação.

Assinam a ação pelo MPF, os procuradores da República Luís de Camões Lima Boaventura, Luisa Astarita Sangoi e Paulo de Tarso Moreira Oliveira; pelo MPPA, os promotores de justiça Ione Missae Nakamura e Tulio Chaves Novaes, além de Rodrigo Magalhães de Oliveira, assessor do MPF, Ramon da Silva Santos, assessor da promotoria Agrária e os estagiários de Direito Thaison Brasil e Sandra Lorrany Carvalho.

Danos ao lago e aos pescadores tradicionais

“Não tem mais um lago, hoje a gente tem só um lamaçal”, afirmou um dos pescadores entrevistados na visita técnica realizada pelo MPF no dia 7 de dezembro deste ano. O resultado está no Relatório de diligências para investigar os impactos socioambientais sobre a sub-bacia hidrográfica do lago do Juá, e aos pescadores que tradicionalmente usam o local. Com isso, o MPF demonstra a necessidade de realização de consulta prévia, livre e informada aos pescadores artesanais impactados, nos termos da Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho.

O relatório contém entrevistas com moradores e pesquisadores, registros fotográficos, análise de imagens de satélite e mapa topográfico do lago. O Juá é um lago fluvial situado a nove quilômetros do centro urbano de Santarém, em zona considerada de expansão urbana desde o ano de 2006, nas proximidades da Rodovia Fernando Guilhon. Conecta-se ao rio Tapajós através de um canal ou paraná.

Com a expansão da cidade, o Juá se tornou uma das poucas opções para os pescadores artesanais que vivem na zona urbana, em especial nos bairros do Maracanã e Mapiri. Segundo dados da Colônia de Pescadores Z-20, apenas nestes dois bairros há 240 pescadores cadastrados. O Juá também é utilizado por pescadores dos bairros do Santarenzinho, São Brás, Eixo Forte, Cucurunã e Santa Maria. As lideranças foram unânimes em apontar que o desmatamento produzido pela Buriti, em 2012, foi o principal fator desencadeador do assoreamento do Juá e, consequentemente, da mudança de seus modos de vida e da precarização de sua subsistência.

Os impactos foram confirmados na dissertação de mestrado “Avaliação espacial e temporal das taxas de sedimentação do Lago do Juá, Santarém-Pará-Brasil”, defendida por Zelva Cristina Amazonas Pena em julho de 2016, no Programa de Pós Graduação em Recursos Aquáticos Continentais Amazônicos, da Ufopa. A pesquisa e suas conclusões estão detalhados na ação, como elevação de temperatura, mudanças na característica da água e redução de pescado. “O assoreamento do Lago do Juá, portanto, é um fato inegável, empiricamente e cientificamente comprovado”, afirma o MP.

Para o MP estão demonstrados todos os elementos ensejadores da responsabilidade civil da empresa Sisa pelo assoreamento do Lago do Juá e impactos decorrentes: conduta (supressão vegetal e omissão nas medidas de contenção do assoreamento), nexo causal (erosão e carreamento de sólidos por águas pluviais) e dano (assoreamento do Juá, modificação do ecossistema e impactos sobre os pescadores artesanais).

Histórico

Em 2012, quando recebeu as primeiras licenças, a empresa suprimiu 186,7 hectares de vegetação nativa. Na época declarou que pretendia utilizar cinco dos imóveis para implantação de loteamento, totalizando 965 hectares. A área foi fracionada em lotes inferiores a 100 hectares, limite que a lei permite ao município conceder o licenciamento. “O fracionamento do licenciamento ambiental não implicou somente em driblar a competência do órgão licenciador estadual, que seria constitucional e legalmente competente para conduzir o licenciamento, mas também implicou na não obrigatoriedade de Estudo de Impacto Ambiental e de realização de audiência pública”, ressalta a ação.

Em janeiro de 2013, as licenças foram canceladas, com o envio do processo de licenciamento ambiental à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará. Em agosto de 2017, a empresa requereu novamente à Semma de Santarém o licenciamento ambiental, desta vez referente à área inferior. Embora tenha solicitado abertura de licenciamento apenas quanto ao Residencial Cidade Jardim I, “o artifício do fracionamento persiste”, afirma o MP.

Em reuniões realizadas com a representação da empresa, foi questionado quanto à pretensão de dar continuidade aos outros quatro residenciais na mesma área. “A ré deixou claro que a expansão do licenciamento estará sujeita tão somente às condições de mercado”, admitindo que, se as condições forem favoráveis, irá expandir o loteamento. “Se antes a estratégia foi fracionar o imóvel, mas licenciá-los concomitantemente; agora, a estratégia é licenciar etapa por etapa, de acordo com a lei da procura do mercado, como se o impacto não fosse cumulativo”, aponta a ACP.

O atual relatório de controle ambiental apresentado à Semma pela empresa assegura que “na área de estudo não existe corpos d’águas”, reduzindo os impactos do empreendimento aos limites do loteamento. Afirma, porém, que o lago do Juá será o principal corpo hídrico receptor da drenagem pluvial do empreendimento. “Não há previsão de impactos sobre o Juá, nem há qualquer menção sobre assoreamento, impactos sobre os pescadores e as famílias que vivem nos arredores do lago. Tampouco o estudo faz menção sobre os gravíssimos impactos já produzidos”, adverte o MP. “Trata-se de um verdadeiro escárnio com a probidade administrativa e, acima de tudo, com a sociedade civil santarena”.

A ação ressalta ainda que diante da impossibilidade de negar os danos consumados ao Lago do Juá, a estratégia da empresa tem sido de responsabilizar a “Ocupação Vista Alegre do Juá” e o Residencial Salvação pelo assoreamento, evitando se comprometer com os custos da reparação. Ocorre que a ocupação teve início em agosto de 2014, momento posterior ao início do intenso assoreamento, o que ocorreu no inverno de 2013 (março a julho).

Com relação ao Residencial Salvação, “não há dúvidas de que este empreendimento também concorreu para o assoreamento do Lago do Juá, sobretudo antes da conclusão de seu sistema de drenagem, porém as informações preliminares levantadas indicam que a maior responsabilidade pelo assoreamento é da supressão vegetal produzida pela Buriti, o que poderá ser tecnicamente verificado em ulterior perícia judicial”, conclui o MP.


Com informações de Lila Bemerguy, do MPPA