"Se beber, não dirija".
A frase, usada frequentemente em campanhas publicitárias na televisão e no
rádio, faz parte do cotidiano do brasileiro há mais 10 anos. Em alguns estados,
como Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, ela obrigatoriamente deve
ser impressa em cardápios de bares e restaurantes.
Embora campanhas embasadas nessa
frase já fossem realizadas desde o fim dos anos 1990, é com a aprovação da Lei
Seca, em 2008, há exatos 10 anos, que ela passa a ser utilizada de forma mais
ampla e articulada pelo poder público e organizações da sociedade civil,
tornando-a cada vez mais familiar para a população.
A nova legislação trouxe
modificações importantes no Código de Trânsito. De lá pra cá, especialistas
celebram dados positivos, mas também levantam questões que consideram
relevantes para aprimorar o quadro.
Um estudo - conduzido pelo Centro
de Pesquisa e Economia do Seguro (CPES) e divulgado no ano passado - aponta
que, entre 2008 e 2016, a Lei Seca teria evitado a morte de quase 41 mil
pessoas.
Comparativamente, equivale a
evitar a queda de mais de 80 aviões Boeings 747. "Agregando o valor
estatístico da vida, corrigido para 2016 pelo IGP-DI ((Índice Geral de Preços -
Disponibilidade Interna), a economia brasileira teria evitado uma perda de
produto de R$ 74,5 bilhões a preços de 2016", registra o estudo.
O levantamento tomou como base
estatísticas do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele mostrou ainda que, embora
tenha havido aumento de 7% no número de acidentes em 2016 na comparação com
2013, houve 35 mil mortes a menos.
Segundo o levantamento, os óbitos
se mantêm estáveis com tendência de queda desde 2008, o que sugere a ocorrência
de acidentes menos graves a partir da aprovação da Lei Seca.
De acordo com o CPES, os
acidentes de trânsito são apontados como uma das principais causas de invalidez
e mortes precoces no Brasil, e a Lei Seca surgiu da necessidade de impor
penalidades mais severas para as infrações no trânsito com o intuito de dar
respostas a esses índices.
Ela não teria apenas ampliado o
rigor da legislação, mas também estimulado o debate. "Pelo lado da
sociedade civil, surgiram campanhas de educação na mídia, escolas e
empresas", aponta a pesquisa.
O levantamento do CPES é citado
no livro Lei Seca, 10 Anos — A Lei da Vida, lançado ontem (18), em cerimônia no
Rio de Janeiro pelo deputado federal Hugo Leal (PSD), autor do projeto aprovado
em 2008.
A obra narra a trajetória dos 10
anos, passando pelas discussões sobre a legislação, construção do conceito de
alcoolemia zero, desdobramento, modificações e interpretações no Poder
Judiciário.
Para o deputado, a principal
preocupação é garantir a efetiva fiscalização. "Não adianta ampliar a
punição e não punir. A suspensão da CNH [Carteira Nacional de Habilitação] por
um ano é uma realidade, mas os estados estão cumprindo? É importante que as
pessoas tenham a percepção de que a lei é aplicada. Aí, sim, haverá impactos.
Se demorar muito, a aplicação da punição pode não ter o efeito que a gente
deseja. Temos números relevantes sobre o impacto da lei, mas ainda não é aquém
do cenário que nós queremos".
Ele avalia, porém, que a
digitalização e a tecnologia já estão contribuindo para uma maior agilidade.
Mudanças
Antes da Lei Seca, o Código de
Trânsito em vigor, aprovado em 1997, já limitava a ingestão até seis decigramas
de álcool por litro de sangue. A legislação de 2008 tolerava o limite de 0,1
miligrama por litro (mg/l). Ela fixou punições que envolvem multas elevadas,
perda da habilitação e recolhimento do veículo. No caso de acidentes com
vítimas, o responsável deve responder a processo penal. Em 2012, uma
modificação estabeleceria a infração a partir de 0,5 mg/l. Uma nova alteração
em 2016 também intensificaria o rigor fixando a alcoolemia zero.
"Diversas pesquisas
mostraram que, mesmo em pequenas quantidades, o reflexo fica
comprometido", defende a professora Deborah Malta, da Escola de Enfermagem
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) . Ela é uma das envolvidas na
Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por
Inquérito Telefônico (Vigitel), coordenada pelo Ministério da Saúde, que trata
a questão do ponto de vista da saúde pública.
Um dado deste estudo que chama
atenção é que o número de homens que assumem beber e dirigir é bem superior ao
de mulheres. Considerando os dados de 2017 coletados em 27 capitais, 11,7% da
população masculina afirmam cometer a infração, contra apenas 2,5% da população
feminina. A discrepância observada no
recorte de gênero também salta aos olhos no estudo do CPES. Desde 2012, mais de
82% dos acidentados no trânsito e mais de 77 % dos mortos foram do sexo
masculino.
Para Débora, o principal desafio
é reduzir disparidades na aplicação da lei, já que é nítida a diferença quando
se comparam capitais. "Há cidades que fazem mais blitz do que outras.
Cuiabá, Goiânia, Teresina, Palmas e São Luís são algumas capitais onde os dados
revelam que a legislação teve menos impacto".
Além disso, ela avalia que, mesmo
onde as ações são mais intensificadas, poderia haver um salto de qualidade com
a maior articulação para envolver os variados órgãos públicos. Outra observação
da pesquisadora é que, em cidades pequenas, a fiscalização acaba ficando sob
responsabilidade exclusiva do governo estadual e na prática não acontece.
O deputado Hugo Leal reconhece a
falta de uniformidade na aplicação da lei em todo o país. "O Rio, por
exemplo, optou por fazer uma política pública de fiscalização e obviamente tem
um impacto. Começou em 2009, um ano depois que a legislação entrou em
vigor". Ele faz referência à Operação Lei Seca que, segundo dados do
governo estadual, realizou mais de 20 mil blitzes desde março de 2009.
Dados do estado de São Paulo
mostram que as ações vêm se intensificando a cada ano. O número de multas mais
que quadruplicou, saltando de 11,7 mil em 2008 para 45 mil em 2016. "A
Câmara aprovou, no fim do ano passado, o Plano Nacional de Redução de Mortes no
Trânsito [Pnatrans]. É um instrumento que será importante. A partir dele,
poderemos cobrar os estados, ver se eles estão cumprindo a legislação e
reduzindo seus índices", acrescenta Hugo Leal.
Rigor
Também em 2016, ficou determinado
que a recusa ao teste do bafômetro é infração gravíssima, além da suspensão do
direito de dirigir. Além disso, foi ampliada a pena prevista ao motorista
causador da morte ou de lesão corporal: passou para cinco a oito anos de
reclusão.
Para o professor de direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Maurício Mota, o grande mérito
da lei foi criar um ambiente em que as pessoas estão tendo mais
responsabilidade.
Ele, no entanto, sente falta de
mais campanhas educativas e se preocupa com o peso dado à multa, o que poderia
produzir injustiça na tentativa de ser pedagógico.
"Uma multa acima de R$ 2 mil
pode ser algo muito excessivo. Há pessoas que não têm condições de arcar (...)
A eficácia da lei não se dá só com repressão. Ela se dá com a constância da
aplicação da lei."
Maurício acredita que o desafio é
pensar a aplicação da lei com garantia de direitos e cita o exemplo do
bafômetro, lembrando que a Constituição determina que ninguém é obrigado a
produzir prova contra si mesmo. No entanto, com as mudanças implementadas em
2016, a detenção pode ocorrer quando a capacidade psicomotora alterada por
influência de álcool for comprovada também por testemunhas e até vídeos.
Outra questão que gera debate é o
número de recursos possíveis. Da primeira notificação até a punição de fato,
são seis possibilidades de manifestação do suposto infrator.
Na visão de Maurício Mota, o
volume pode ser excessivo. Para ele, a preocupação maior deveria ser outra.
"Esses recursos na esfera administrativa nem sempre têm demonstrado
efetividade. Isto é, levar os argumentos do suposto infrator a sério. Não é só
uma questão do número de níveis e instâncias. É garantir o direito à defesa.
Permitir a verificação dos argumentos de forma a transmitir confiança à
população. Não pode ser algo apenas protocolar, pois isso, influencia a
percepção da população sobre a qualidade da lei."