![]() |
Trabalhadores da fazenda Espírito Santo eram vigiados por capangas armados com espingardas, relatou José Pereira (foto ilustrativa por Jason Gillman em licença CC0 via Pixabay.com) |
O Ministério Público Federal
(MPF) encaminhou nesta segunda-feira (26) à Justiça Federal em Marabá, no Pará,
manifestação em que defende a imprescritibilidade dos crimes contra José
Pereira Ferreira, que em 1989, aos 17 anos, foi submetido a condições análogas
às de escravo, tentou fugir e foi baleado na cabeça, só sobrevivendo porque
fingiu-se de morto ao lado do corpo de outra vítima dos criminosos.
Além de os crimes terem sido
caracterizados como crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis tanto
na legislação nacional quanto na internacional, no caso José Pereira o Brasil
comprometeu-se perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a
julgá-los, lembra o MPF.
“Esta é uma oportunidade para o
Estado Brasileiro, através deste juízo, não se mostrar indiferente aos
compromissos internacionais assumidos em matéria de proteção e garantia dos
Direitos Humanos, efetivando o princípio da prevalência desses direitos nas
relações internacionais e garantindo o combate à impunidade desses delitos”,
ressaltam na manifestação as procuradoras da República Marília Melo Figueirêdo,
Lígia Cireno Teobaldo e Thais Stefano Malvezzi.
O compromisso com a CIDH foi
assumido pelo país em 2003, em decorrência de o Brasil ter sido acusado pelas
organizações não governamentais Américas Watch e Centro pela Justiça e o
Direito Internacional (CEJIL) de não ter respondido adequadamente às denúncias
de prática de trabalho análogo à escravidão e de haver desinteresse e
ineficácia nas investigações e processos referentes aos criminosos.
No decorrer do processo na CIDH o
Brasil reconheceu pela primeira vez sua responsabilidade pela existência de
trabalho escravo no país e também se comprometeu a adotar medidas – incluindo
modificações legislativas – para prevenir e punir outros casos, além de
iniciativas de conscientização sobre o tema.
Paradoxo – “Vê-se, assim, que a
decretação da prescrição fará do caso José Pereira um paradoxo: o caso que
chega às instâncias internacionais, via Sistema Interamericano de Direitos
Humanos, origina acordo internacional firmado pelo Brasil, alcança ampla
repercussão e cria novos paradigmas políticos e sociais no combate ao
trabalho escravo contemporâneo, é o mesmo que confirma e se torna índice
daquilo que ele próprio denunciou, a manutenção da impunidade e o não
cumprimento das obrigações internacionais de proteção e defesa dos Direitos
Humanos, mesmo após o Estado brasileiro ter se responsabilizado pelas
violações e se comprometido a executar as recomendações estabelecidas”,
alerta o MPF.
As procuradoras da República
lembram que em outro caso de trabalho escravo no Brasil, julgado em 2016 pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso Fazenda Brasil Verde – que,
assim como a fazenda Espírito Santo, onde José Pereira foi vitimado, está
localizada no município de Sapucaia (PA) –, a corte declarou que a prescrição
“é incompatível com a obrigação do Estado brasileiro de adaptar sua
normativa interna de acordo com os padrões internacionais”, ressaltando que a
figura da prescrição representou uma violação ao artigo 2 da Convenção
Americana de Direitos Humanos, tendo em vista que se constituiu em um elemento
determinante para manter a impunidade dos fatos constatados.
“Não apenas o eventual
reconhecimento da ocorrência de prescrição do presente caso conduziria,
certamente, a um ilícito internacional, pondo o Brasil na perspectiva de ser
levado à Corte IDH, que, em um tal caso, diante de sua jurisprudência,
decidiria em desfavor do Estado brasileiro, como tal declaração ofenderia
frontalmente a própria Constituição da República, tendo em vista o que esta
dispõe em seus artigos 1º, incisos II e III, 4º, II e 5º, §§ 1º, 2º e 4º e o
posicionamento consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, aqui exposto,
de que os estatutos de direitos humanos incorporados pelo Brasil ao ordenamento
jurídico interno possuem caráter de norma supralegal, afastando qualquer
disposição de caráter legal com ela conflitante”, destaca o MPF.
Tribunal – No Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, em Brasília (DF), onde em fevereiro de 2016 um dos réus
interpôs recurso para pedir a anulação de atos processuais e a decretação da
prescrição do crime de submissão a trabalho escravo, o MPF também defende a
imprescritibilidade.
A prescrição penal é
inadmissível e inaplicável quanto se tratar de violações muito graves aos
direitos humanos nos termos do direito internacional, como vem assinalando a
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, registrou
manifestação do MPF enviada ao TRF-1 em março do mesmo ano.
A imprescritibilidade do crime
cometido mediante graves violações a direitos humanos decorre da própria
imprescritibilidade do direito da vítima, de sua família e da sociedade de
ver punidos os responsáveis por tais transgressões, destacou o MPF.
O recurso do réu Francisco de
Assis Souza de Alencar aguarda julgamento no TRF-1. Caso o recurso seja negado,
a Justiça Federal pode realizar júri para julgamento de Alencar e dos outros
três acusados: Augusto Pereira Alves, José Gomes de Melo e um quarto
funcionário da fazenda Espírito Santo identificado apenas como Carlão.
Saiba mais – Prescrição da
pretensão punitiva é um termo que refere-se à perda do direito do Estado de
punir ou de executar a pena pelo decurso do tempo, extinguindo a punibilidade
do acusado ou condenado (fonte: glossário de termos jurídicos do site do
MPF/BA).
Processo nº
0005216-83.2015.4.01.3901 – 1ª Vara da Justiça Federal em Marabá (PA)