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Loucura, solidão e morte estão entre os estados entrelaçados pelo ator Nilton Cezar |
Quando morreu
em 1883, José Joaquim de Campos Leão talvez fosse só um professor e delegado
gaúcho de 54 anos. Sua obra, escrita no século 19, só foi encenada a partir da
década de 1960, passando a ser celebrada e encenada com o entusiasmado aval do
crítico teatral Yan Michalski que o considerou um precursor do Teatro do
Absurdo, uma das tendências mais importantes da segunda metade do século 20,
que divergiam radicalmente da dramaturgia tradicional realista pela sua
atmosfera de desolação, solidão e incomunicabilidade do homem moderno.
Por volta de
1864, Leão passa a sofrer de alucinações e é internado. 16 de suas obras foram
escritas entre janeiro e maio de 1866, um dos seus períodos mais conturbados.
Agora em 2018, a Companhia Teatral Nós Outros traz o ator Nilton Cezar num
trabalho solo intitulado Qorpos Santos, dirigido por Hudson Andrade. A peça
estará em cartaz entre os dias 23 de novembro e 01 de dezembro, de sexta (20
horas) a domingo (19 horas). As apresentações acontecerão no Espaço das Artes
de Belém (Travessa Tiradentes, 10, Umarizal, próximo à Praça da República).
O nome
corpo-santo é um apelido que Leão recebeu no tempo em que o autor viveu
“completamente separado do mundo das mulheres”, mas é em 1877 que ele assume a
grafia Qorpo-santo. Considerado inovador na forma e no conteúdo, Qorpo-santo
apresenta elementos incomuns para a cena brasileira da época, usa imagens
surreais, uma linguagem violenta, direta, com uma retórica como recurso
paródico, e se mostra inconformado com os cacoetes do teatro brasileiro do
século 19, “sempre tão bem ajeitado e arrumado em seus enredos lógicos, em suas
frases de efeito, em seu moralismo marcante, permitindo-se, de vez em quando, e
sem grandes ofensas, um riso mais solto ou algumas lágrimas em excesso”,
comenta o professor e jornalista Flávio Aguiar em seu livro Os Homens
Precários: Inovação e Convenção no Teatro de Qorpo-Santo.
Dado esse
estranhamento, as peças de Qorpo-santo ficam esquecidas entre o fim do século
19 e a primeira metade do século 20. Em 1966, uma montagem do Clube da Cultura
do Curso de Arte Dramática da UFRGS reúne três peças de Qorpo-santo e se torna
um marco do seu redescobrimento e reconhecimento, confirmado em 1968 quando a
modesta, mas convincente montagem do diretor Antônio Carlos de Sena participa
do Festival Nacional de Teatros de Estudantes, no Rio de Janeiro.
Qorpo-santo
não é só um importante marco da dramaturgia brasileira, mas uma imensa
dificuldade para diretores e atuantes em transformar seus pesadelos em
realizações cênicas à altura da originalidade dos seus textos. Começamos em
janeiro, lendo diversas peças do autor. Nilton selecionou seis; pinçamos seis
personas e o que começou com um fascínio se tornou um projeto e um desafio. Cezar
declara “Não imaginava que seria tão difícil. Eu iria fazer seis personagens
complexos. Muito difícil! Muito tenso! Muito denso!”
O trabalho seguiu de forma
lenta e gradual. “Não se propunha a ser mais um processo teatral, mais uma
montagem de uma peça. Minha proposta ao Nilton era de que ele se desafiasse a
ser o que ele não tinha sido até então!”, diz o diretor Hudson Andrade. Apesar
da escrita ter sido feita dois séculos atrás, o autor aborda e transborda temas
absolutamente atuais, que exigiu muito da pequena equipe. “Meu corpo tem
sentido bastante toda essa carga de emoções que os personagens tem tirado de
mim. Para compô-los cheguei ao meu limite e até mesmo os ultrapassei. Coloquei
muita coisa minha, da minha vida, da minha trajetória neles e creio que
resultará em um lindo trabalho!”, completa Nilton. O diretor e o atuante
buscaram muitas referências e entre elas está o filme Fragmentado (Split, EUA,
2016) escrito e dirigido por M. Night Shyamalan, de onde fomos buscar alusões
ao Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), ou transtorno de personalidade
múltipla, um distúrbio mental raro, crônico e incurável, caracterizado por uma
interrupção e/ou descontinuidade na consciência, memória, identidade e emoção.
Qorpos Santos
fala e mostra abandono, culpa, paixões, (auto) violência, ternura, saudade,
amor, relacionamentos abusivos, relações conjugais, morte e vida. Os seis
personagens vão do sisudo Brás à Melquíades, um jovem estudante; do moribundo
Mateus à voluptuosa Ludovica; do romântico Lindo à Farmácia, uma matrona
ranzinza. Para interpretá-los Nilton utiliza poucos adereços e recursos de luz
num cenário que remete a confinamento, onde o público vai compartilhar do
espaço reduzido que nos dá a falsa ideia de personalidade, mas que promove
apenas o individualismo, tornando-nos incapazes de ver o outro para além dos
rótulos que nós mesmos lhes/nos atribuímos. A produção da Nós Outros também
quer se posicionar num mundo que trata como loucos todos e todas que querem
transgredir as camisas de força de uma sociedade que invisibiliza e silencia
quem é avesso a limites.
Ser artista é
loucura. Que seja! Vamos então celebrar a insanidade de ser o que se é.
Serviço:
Qorpos Santos, da obra de José Joaquim de Campos Leão, o Qorpo-santo. Com
Nilton Cezar. Dramaturgia e encenação de Hudson Andrade. Preparação corporal de
Leonardo Cardoso. Iluminação e operação de luz de Breno Monteiro. Arte de Diogo
Lira. Apoio do Espaço das Artes de Belém – EAB, Instituto Universidade Popular
– UNIPOP e Método Escola de Oratória. Realização da Companhia Teatral Nós
Outros. 23, 24, 25 e 30 de novembro e 01 e 02 de dezembro. Sextas e sábados às
20 horas. Domingos às 19 horas. Ingressos na bilheteria do EAB a partir das 18
horas. R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia).