O cardápio de facilidades que o Brasil
oferece para os criminosos comercializarem ouro ilegalmente é extenso e
variado. Além de poderem enganar a fiscalização com apenas uma caneta
esferográfica, como alertou o Ministério Público Federal (MPF) à Justiça
(confira a notícia), o país proporciona que os fraudadores possam registrar,
como área de origem do minério extraído ilegalmente, qualquer uma das milhares
de lavras com exploração autorizada, mesmo que o prazo para exploração tenha
vencido sem que os trabalhos tenham sido iniciados, ou que a prestação anual de
contas ao governo registre produção nula ou incompatível com a indicada em
notas fiscais.
A receita para tanta tranquilidade
concedida às organizações criminosas é simples: falta total de informatização
do sistema de controle, falta total de fiscalização e uma legislação
ultrapassada, que desconsidera a entrada, nesse ramo econômico, das empresas de
mineração de escala industrial.
E, ao ser negligente em fiscalizar o uso
das permissões de lavras garimpeiras e a produtividade dessas lavras, o país
incentiva o crescimento de um mercado de especulação com essas autorizações.
Como essas permissões são negociáveis, como não há limite para o número de
permissões que uma empresa ou uma pessoa podem ter, e como as lavras não são
fiscalizadas, especuladores buscam obtê-las em massa, apenas para revendê-las.
Por isso, o MPF pediu à Justiça que
obrigue a Agência Nacional de Mineração (ANM) a cancelar todas as Permissões de
Lavra Garimpeiras (PLGs) com prazo de exploração vencido e as PLGs cujos
relatórios anuais de produtividade não tenham sido apresentados ou que não
tenham informado a produção efetiva da lavra.
Facilidade ao ‘esquentamento’ – Em ações
ajuizadas este ano com base em provas obtidas em investigação inédita para
esmiuçar o funcionamento de uma das maiores empresas compradoras de ouro no
maior polo da mineração ilegal no Brasil, a bacia do Tapajós, no sudoeste do
Pará, o MPF em Santarém exemplifica como o “esquentamento” (acobertamento) da
origem ilegal do ouro é facilitado pelo não cancelamento de PLGs de áreas não
exploradas ou que apresentem relatórios de produtividade – o Relatório Anual de
Lavra (RAL) – sem indicação da produção efetiva.
O posto de compra da Ourominas registrou
em 704 notas fiscais que a maior parte do ouro adquirido pela empresa entre
fevereiro de 2017 a maio de 2018 – um total de 81 quilos do minério – tinha
sido extraída de três áreas com PLGs válidas, publicadas no Diário Oficial da
União em abril de 2017. No entanto, a detentora das PLGs informou à
investigação do MPF e da Polícia Federal (PF) que a extração sequer tinha sido
iniciada. “Se a ANM tivesse cumprido sua missão institucional e cancelado a
referida licença administrativa – nos termos do artigo 9º, inciso I, da Lei
7.805/1989 – em razão de a exploração não ter sido iniciada no prazo de 90
dias, a fraude não teria sido possível”, critica o MPF em uma das ações.
Ao investigar as PLGs das cinco áreas
declaradas pelo posto de compra da Ourominas como as fornecedoras do maior
volume de ouro adquirido pela empresa durante o ano de 2015 – quase 270 quilos
–, o MPF e a PF detectaram que a ANM também poderia ter percebido essa fraude
de maneira simples, se houvesse informatização e fiscalização dos dados: essas
cinco áreas não tinham declarado nada nos seus relatórios de produtividade.
O posto de compra também registrou, em
notas fiscais, três PLGs como as supostas maiores fornecedoras de ouro ao à
empresa entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. Essas áreas constavam como
lavras não iniciadas.
No total, só de 2015 a 2018 foram feitas
4,6 mil transações ilegais pelo posto da Ourominas em Santarém, perfazendo 610
quilos do minério adquiridos de maneira ilícita, um prejuízo de R$ 70 milhões à
União. E esse prejuízo pode ser muito maior, tendo em vista que o valor foi
calculado com base nas indicações das notas fiscais, que são preenchidas apenas
pelos criminosos, com indicações bem inferiores ao valor de mercado.
Só na bacia do Tapajós são
comercializadas ilegalmente 30 toneladas de ouro por ano – R$ 4,5 bilhões em
recursos não declarados –, seis vezes mais que o comércio legal na mesma
região, segundo informações apresentadas pela ANM em audiência pública
realizada em abril deste ano na Câmara dos Deputados. E esse número também pode
ser bastante maior, tendo em vista que o descontrole sobre a cadeia econômica
do ouro não permite que exista a garantia de uma mínima margem de acerto nas
projeções sobre o volume de minério comercializado ilegalmente.
Especulação – Além das provas obtidas
durante três anos de investigações, o MPF cita nas ações, pela primeira vez,
trechos de um manual de atuação da instituição para o combate à mineração
ilegal. O documento foi elaborado pela força-tarefa Amazônia do MPF, integrada
por procuradores da República de todos os estados da região, que fizeram um
diagnóstico aprofundado sobre os problemas, indicando soluções para a questão.
O estudo da força-tarefa explica a
nocividade do uso especulativo das PLGs: “Esses ativos patrimoniais podem ser
utilizados para especulação, mercê do valor do minério a ser garimpado nos
mercados nacional e internacional, e são inclusive negociáveis. O quadro, pois,
transforma títulos minerários e requerimentos administrativos em investimentos
especulativos, e não produtivos, contrariando a ideia-mãe de que a cessão da
exploração de jazidas por parte da União Federal ao particular dá-se para que
ele lavre, produza, e não para que ele permaneça inerte”.
A força-tarefa elenca os artigos da
legislação que, se cumpridos, inibiriam a especulação: o artigo 9º, inciso I,
da Lei 7.805/1989, que determina ao titular de PLG que inicie a lavra em
noventa dias, salvo motivo justificado; o artigo 29, inciso I, do Código de
Mineração, que atribui ao titular de alvará de pesquisa a obrigação de iniciar
os trabalhos em 60 dias contados da publicação do ato autorizativo; e o artigo
47, inciso I, também do Código de Mineração, que impõe ao titular de direito de
lavra a obrigação de iniciar a exploração da jazida no prazo de seis meses
contados da data de publicação da concessão em diário oficial.
Série – Desde o final de julho o MPF
está publicando uma série de notícias para resumir como as várias fragilidades
do sistema de controle da cadeia do ouro possibilitam a atuação de organizações
criminosas como a denunciada pela instituição e geram prejuízos financeiros,
sociais e ambientais de proporções devastadoras.
Também estão sendo descritos os pedidos
feitos pelo MPF à Justiça relativos às instituições públicas e às empresas
processadas.
Este é o terceiro texto da série. O
primeiro apresenta um panorama dos problemas e o segundo detalha as facilidades
às fraudes e dificuldades à investigação resultantes da falta de um sistema
informatizado de controle.