Diante dos dados alarmantes recolhidos
pelos sistemas de satélite sobre o aumento na devastação em várias porções da
floresta amazônica, o Ministério Público Federal (MPF) no Pará conduz
investigações em três municípios e na capital paraense, para apurar a
diminuição no número de fiscalizações ambientais na região, a ausência da
Polícia Militar do estado no apoio às equipes de fiscalização e o anúncio,
veiculado em um jornal de Novo Progresso (sudoeste do estado) convocando
fazendeiros para promoverem um “Dia do Fogo”, na semana passada. Os
procuradores da República em Santarém, Itaituba, Altamira e Belém apuram a
relação entre a redução da fiscalização ambiental e o crescimento, registrado
em dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de 50%
no desmatamento e de 70% nas queimadas.
Para o MPF, “o enfrentamento do
desmatamento ilegal é uma política de Estado, não de governos específicos”,
está previsto em inúmeros compromissos nacionais e internacionais do Brasil e é
imposto pela Constituição brasileira e pela Política Nacional de Meio Ambiente
que diz: “a ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico,
considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente
assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo”.
O procurador Camões Boaventura
destacou “a existência de diversos
estudos científicos que correlacionam o desmatamento e as queimadas à perda
expressiva da biodiversidade, ao aquecimento global, a desregulação hidrológica
dos regimes de chuvas, à insegurança alimentar (sobretudo dos povos da
floresta) e à ampliação de doenças de origem ambiental, como as
cardiorrespiratórias”. “Em suma, o enfrentamento do desmatamento e das
queimadas não é faculdade do Poder Público. É dever!”, diz no documento que deu
início ao procedimento de apuração em Santarém.
O procurador afirma que, apesar dos
dados oficiais mostrarem aumento no desmatamento e dos relatos recebidos de
povos da floresta confirmarem a emergência de crimes ambientais, o MPF tem
recebido cada vez menos autos de infração – documentos que resultam da
fiscalização ambiental – lavrados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
(Ibama) e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio). Mesmo com a crise orçamentária do país, diz Boaventura, “está
consolidado nas instâncias judiciais nacionais o entendimento de que restrições
de cunho orçamentário não podem ser impostas indiscriminadamente a ponto de
obstar a concretização das ordens constitucionais relativas aos direitos
fundamentais da sociedade, como é o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado (art. 225), o direito à saúde (art. 6º, caput) e o direito à vida
(art. 5º, caput), todos de estatura constitucional”.
O MPF questiona o argumento do déficit
orçamentário inclusive com as recentes ações e declarações das autoridades
governamentais em Brasília que dispensaram os serviços do Inpe, uma entidade
pública federal, anunciando a contratação de empresa privada para realizar o
sensoriamento remoto de áreas desmatadas. “Dispensou-se, ainda, vultosa quantia
que seria repassada por outros países ao Brasil a título do Fundo Amazônia para
combater o desmatamento”.
Na abertura da investigação, a
procuradoria da República em Santarém alerta ainda para o fato de que a
negligência nos compromissos do Estado brasileiro com o meio ambiente pode
resultar em responsabilização civil e constituir atos de improbidade
administrativa, passíveis de punições como a perda dos direitos políticos e
multas. “Em outras palavras, são responsáveis civilmente por danos ambientais
qualquer pessoa, física ou jurídica, que tenha agido em desfavor do meio
ambiente ou tenha deixado de agir em favor do meio ambiente quando deveria
fazê-lo, o que é o caso do poder público”, diz.
“Há de se lembrar, mais uma vez, que a
política de enfrentamento ao desmatamento e às queimadas não é faculdade. Não é
opção. É obrigação estatal, independentemente da afinidade com a pauta de quem
assume instâncias de poder. As repercussões podem ser, ainda, na esfera penal,
como, por exemplo, a incidência dos tipos penais de prevaricação, advocacia
administrativa (ambos previstos no Código Penal) e art. 684 da Lei nº 9.605/98
(que dispõe acerca das sanções penais das condutas lesivas ao meio ambiente)”,
afirma no documento.
A investigação em Santarém prevê uma
série de medidas, desde um levantamento detalhado dos autos de infração
ambiental enviados pelas autoridades do Executivo ao MPF, pedidos de
informações às instituições científicas que trabalham com os temas do desmatamento
e das queimadas e requerimentos para que o Ministério do Meio Ambiente, o Ibama
e o ICMBio enviem dados detalhados sobre as ações de combate ao desmatamento e
aos incêndios florestais.
Dia do Fogo – Em Itaituba, o procurador
da República Paulo de Tarso Moreira Oliveira investiga a convocação divulgada
em jornal de Novo Progresso, no sudoeste do Pará, supostamente feita por
fazendeiros, para um “dia do fogo”, em que os produtores rurais incendiariam
grandes áreas de floresta para, nas palavras do jornal Folha do Progresso
“mostrar vontade de trabalhar ao presidente Bolsonaro”. “Precisamos mostrar
para o presidente que queremos trabalhar e único jeito é derrubando. E para
formar e limpar nossas pastagens, é com fogo”, afirmou ao jornal um dos
organizadores do “queimadaço”.
O dia previsto para a dita manifestação
era 10 de agosto e dados do Inpe mostraram um incremento significativo nas
queimadas nesse e nos dias posteriores, principalmente nos municípios de Novo
Progresso e Altamira, ambos cortados pela BR-163 e campeões de desmatamento na
região amazônica. De acordo com o Inpe, Novo Progresso teve 124 registros de
focos de incêndio no “dia do fogo”, um aumento em 300% em relação ao dia
anterior. No dia seguinte foram 203 focos. Em Altamira, os satélites detectaram
194 focos de queimada em 10 de agosto e 237 no dia seguinte, um aumento
impressionante de 743% nos focos de incêndio.
A investigação do MPF em Itaituba
questionou o Ibama antes da data prevista para a dita “manifestação” sobre a
necessidade de fiscalização preventiva. Em resposta, o escritório da autarquia
informou que as ações de fiscalização estavam prejudicadas pela ausência de
apoio da Polícia Militar, “o que acaba por colocar em risco a segurança das
equipes em campo. O Ibama conseguiu enviar apenas uma viatura para “fortalecer
a brigada do Prevfogo em Itaituba”, mas o “dia do fogo” efetivou-se assim
mesmo.
“Pode se constatar, diante de tal
cenário, grave negligência do Estado na proteção da floresta amazônica, o que
abre larga margem para ações desenfreadas por infratores contra o meio
ambiente. Tem-se, ainda, notícia de que os focos de incêndio ocorreram,
inclusive, no interior de áreas públicas federais, como Unidade de Conservação
Flona do Jamanxim, recategorizada por lei que reduziu drasticamente sua área,
e, Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, a qual já sofre intensa
pressão por grileiros, fazendeiros e mineradores, sendo de extrema relevância a
investigação dos possíveis crimes ambientais perpetrados em seus interiores durante
a ocorrência das queimadas noticiadas”, diz o procurador Paulo de Tarso no
documento inicial da investigação, que requisita informações do Ibama, da Força
Nacional, da PM do Pará, do Ministério Público do Pará (MPPA) e da Polícia
Civil, que já abriram investigação sobre o “dia do fogo”.
Ausência de fiscalização – Em Altamira e
Belém, o que chama atenção dos procuradores da República é a justamente a
precariedade da fiscalização ambiental. Em Belém os procuradores Nathalia
Mariel e Ricardo Negrini tentam há dez dias agendar uma reunião com a
Secretaria de Segurança Pública e o comando da Polícia Militar para tratar da
retirada do apoio policial às ações de fiscalização ambiental, que impediu o
Ibama de conter o “dia do fogo”. As denúncias de que o governo do Pará retirou
as tropas que faziam a segurança dos fiscais nas áreas de desmatamento foram
divulgadas em jornais locais e nacionais e, se confirmadas, podem estar
contribuindo para a precariedade na fiscalização ambiental e o aumento tanto de
queimadas quanto de derrubadas florestais.
Em Altamira o problema é crônico e está
relacionado à instalação da usina de Belo Monte. A procuradora Thais Santi
registrou denúncias de invasões de quase todas as terras indígenas na região do
médio Xingu, por quadrilhas de grileiros, madeireiros e garimpeiros, para roubo
de terras, madeira e minerais preciosos. Enquanto os conflitos se alastravam na
esteira da intensa migração promovida pelo governo brasileiro para a região das
obras da hidrelétrica, a partir de 2010, a fiscalização ambiental foi ficando
cada vez mais reduzida, o que tem se agravado em 2019.
As quadrilhas ficaram livres para agir,
apesar da proteção das terras indígenas ser uma condicionante específica de
Belo Monte e, no escritório do Ibama na cidade, restam hoje apenas três
servidores, sem verbas ou equipamentos para realizar qualquer trabalho. O
problema é antigo e, por esse motivo, as investigações em Altamira são
anteriores à recente explosão nas taxas de desmatamento e queimadas em toda a
Amazônia. A apuração do MPF prevê vistorias e inspeções na região para concluir
o trabalho nas próximas semanas.