O Ministério Público Federal (MPF)
entrou com recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília,
contra ordem de reintegração de posse concedida pela Justiça Federal de
Itaituba que prevê a retirada, com força policial, de indígenas Kayapó Mekragnotire
que protestam desde segunda-feira na BR-163. A ordem judicial foi pedida pela
Polícia Rodoviária Federal e emitida pela Justiça sem aviso ao MPF, que tem o
dever constitucional de proteger direitos indígenas e deveria ter sido intimado
sobre o pedido para ter oportunidade de se manifestar.
“A intimação do MPF não ocorreu em
nenhum momento do processo, pelo que só foi possível tomar conhecimento da
decisão liminar por veículos informais de comunicação. Resta patente que uma
das partes do processo é grupo indígena em situação de extrema vulnerabilidade,
sendo imprescindível chamar ao feito o Ministério Público Federal, que tem como
uma de suas missões institucionais defender, em juízo, os direitos e interesses
das populações indígenas”, diz o recurso enviado ao TRF1.
A ordem de reintegração de posse ainda
fixou multa diária de R$ 10 mil aos indígenas. Para o MPF, a decisão afronta
princípios e valores do ordenamento jurídico-constitucional, viola o direito de
manifestação e deixa de observar as legítimas reivindicações feitas pelos
indígenas, que pedem a proteção do último maciço florestal da Amazônia
oriental, que fica nas suas terras, a retirada de invasores e garimpeiros e
investimentos na saúde, ainda mais urgentes por causa da pandemia de covid-19.
Os Kayapó Mekragnotire somam 403 casos da doença e apenas um médico atende toda
a etnia. Nas duas terras indígenas onde vivem os manifestantes, Baú e
Mekragnoti, a Secretaria de Saúde Indígena não tem motoristas nem carros para
remover pacientes que necessitem de hospitalização.
“O ponto de partida para a compreensão
do presente caso é o reconhecimento da distinção entre os valores envolvidos.
De um lado, temos a União buscando a desobstrução de uma via pública federal,
ocupada temporariamente por manifestantes indígenas, e de outro, a tribo
indígena Kayapó reivindicando, em suma, condições dignas de subsistência e
proteção, por parte do poder público, ante aos extremos danos socioambientais
sofridos recorrentemente”, diz o MPF no agravo de instrumento.
O recurso explica que a manifestação dos
Kayapó Mekragnotire, além de legítima, não ameaça nenhum direito já que a
rodovia sequer estava bloqueada pelos manifestantes. “O juízo de primeiro grau
se ateve apenas em especulações para proferir decisão, que acabou por esvaziar
o importante pleito dos indígenas e desviar o foco do que é urgente combater.
Tolher a voz dos indígenas dessa maneira, sem garantir que sejam ouvidos, é
retirar deles o direito constitucional de manifestação”, diz o texto. Para o
MPF, o razoável seria buscar o diálogo com os indígenas e assegurar que seus
pleitos sejam ouvidos pelo poder público. Em protesto contra a decisão
judicial, agora os indígenas passaram a bloquear a estrada.
“Diante do avanço das destruições
ambientais, invasões de seu território, com aumento da disseminação da doença
do novo coronavírus nas aldeias, dentre tantas outras mazelas que vem
ocorrendo, sem qualquer solução efetiva por parte do estado, não se deve
entender por abusivo, mas sim legítimo, o exercício do direito de
manifestação”, conclui o pedido. O recurso do MPF pede uma decisão urgente que
impeça a reintegração de posse com força policial e vai ser julgado pelo
desembargador Antonio de Souza Prudente.
No recurso, o MPF enviou ao Tribunal a
íntegra da carta aberta feita pelo povo Kayapó em que explicam as razões da
manifestação. Confira o texto:
“Nós, Kayapó Mekrãgnotire representando
297 famílias de doze aldeias localizadas nas Terras Indígenas Baú e
Menkragnoti, vimos por meio dessa pedir o apoio da comunidade internacional
para fazer frente aos ataques sistemáticos à implementação do Componente
Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI) do projeto de pavimentação da
rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) nas TIs acima mencionadas, executado pelo
Instituto Kabu há mais de dez anos como forma de mitigar os impactos causados
pelo asfaltamento da estrada, que hoje é a principal via de escoamento da
produção de grãos do Centro-Oeste do país e que ganhou as manchetes em agosto
passado quando Novo Progresso, umas das cidades mais próximas de nosso
território no sul do Pará, foi palco do Dia do Fogo, com repercussão
internacional.
A estrada, cuja construção começou na
década de 70, trouxe desmatamento, garimpo ilegal de ouro no entorno e dentro
de nossas terras, contaminação de nossos rios pelo mercúrio, roubo de madeira e
doenças. Além de especulação imobiliária e expansão da fronteira agrícola. A
soja já está na nossa porta. Depois de uma longa luta, conseguimos o
reconhecimento e a homologação de nossas terras na esteira da nova Constituição
de 1988.
Quando foi feito o estudo de impacto
ambiental do projeto de pavimentação, havia o consenso de que o asfaltamento
deveria ser acompanhado por um grande investimento estatal na infraestrutura
básica que faltou à região desde que a estrada rasgou a floresta, em um
processo que era tratado como um “aumento na governança”. Isso, no entanto,
ocorreu somente de maneira esporádica e pouco articulada, muito mais como
reação a emergências do que como ações planejadas de longo prazo, capazes de
garantir a ocupação dessa enorme região garantindo o respeito a suas
peculiaridades socioambientais.
Hoje, o último maciço de floresta
contínua da Amazônia oriental está sob ataque. Apesar de termos garantido sua
preservação ao longo de gerações, vemos nossos esforços ameaçados de forma
nunca vista, mesmo levando em conta o processo histórico de ocupação de nosso
território a que estivemos sujeitos desde o início da presença de não-índios na
região.”