De volta a sua
terra natal, Dulce Rocque foi morar na Cidade Velha, o primeiro bairro de
Belém. Com seu olhar viajado e crítico, ela notou que o local, que escolheu
para residir, estava tendo um aumento considerável
no degrado urbano, social e cultural. Isso levou Dulce Rocque a fundar o
CiVViva - Cidade Velha-Cidade Viva. O objetivo da Organização Não Governamental
era servir como ponto de referência para uma cidadania ativa e trabalhar em conjunto para encontrar
respostas e soluções para os problemas do bairro. “A CiVViva nasce pra
defender a Cidade Velha do degrado”, resumiu a economista, que é considerada a
defensora do bairro. “Isso porque a defendo com unhas e dentes. Ando com os
olhos abertos e vejo o que não está certo. Reclamo a quem de direito”, completa.
Até pouco tempo
atrás, o bairro da Cidade Velha era considerado um local tranquilo para se
morar. Lá residem moradores antigos, muitos que herdaram as casas de seus pais.
Poucos são os primeiros proprietários. A maioria é de idosos e poucos são
jovens e menos ainda, crianças. A maior parte dos moradores é dos municípios de
Ponta de Pedras, Abaetetuba, Cametá, Igarape-Miri, etc. Muitos até votam nessas
cidades. O bairro possui inúmeros prédios coloniais históricos, com azulejos
portugueses, muitos dos quais tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - IPHAN. O bairro da Cidade Velha faz divisa com o bairro da
Campina, regiões popularmente conhecidas por Comércio, devido a predominância
quase que exclusiva de lojas, armarinhos, escritórios, cartórios e bancos. Por
isso, é comum o movimento de pessoas no bairro diminuir por volta das 18h. O
local fica aparentemente tranquilo e deserto. Nos últimos anos, essa tranquilidade
vem sendo quebrada, principalmente na época do Carnaval e após a migração das casas
de shows para a redondeza.
Carnaval
e Casa de shows
Dulce quer paz na Cidade Velha |
Antigamente o
tradicional Carnaval, com marchinhas e brincadeiras sadias, passavam pela
Cidade Velha. Hoje em dia, pode ser considerado um retrocesso. “Retrocesso se
pensarmos naqueles que acham que estão em Salvador (BA) e chegam com abadá e
carro-som, trio elétrico ou similares, na área tombada, ignorando a necessidade
de defender e salvaguardar nossa memória historico-carnavalesca”, rebate a
defensora Dulce Rocque.
A fundadora do CiVViva não é contra o Carnaval, mas sugere que, nessa
área tombada, deva ser vivido os carnavais paraenses antigos, com bandinha,
blocos com mascarados e fantasias, como faz o cantor Eloy Iglesias, o Xibé da
Galera e o Kaveira. “Eles defendem a nossa memória carnavalesca e ainda
divertem os moradores”, conta. “Levamos tempo para obter o devido respeito ao
nosso patrimônio, e ultimamente todos já providenciavam banheiros, defensas
para os prédios históricos e a limpeza das ruas e praças”, completou.
Mas este ano foi
diferente. O passo foi atrás. A quantidade de abadás e carros-som fazendo
barulho nessa área tombada, em frente às Igrejas antigas, foi grande. Dulce
Rocque conta que este ano foram autorizados cerca de 14 blocos, e nem todos tocavam
música de carnaval. “Teve um sábado que, nos quatro cantos da praça do Carmo,
estavam carros tocando ritmos diferentes, que nada tinham a ver com carnaval.
Policia Militar, Guarda Municipal ou Semma, vimos bem pouco ou nada”, denuncia
a moradora da Cidade Velha.
Se não bastasse
o Carnaval barulhento, chegou também as barulhentas casas de shows. Para Dulce,
a música até que não atrapalha a vida dos vizinhos. O problema é outro: a falta
de estacionamento para os clientes. Os motoristas estacionam nas calçadas de
lios (tombadas). “Tudo isso é proibido por lei. De fato as leis falam de ‘geração
de direitos para os vizinhos, que podem impedir que o uso nocivo da propriedade
alheia lhes afete’”, afirma Dulce, que reclama ainda da falta de fiscalização
da Semob, Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana. E a mesma reclamação
da economista serve para a Semma, Secretaria Municipal de Meio Ambiente, “que
nem quando chamada, aparece para regular o som de bares e outros locais”. Dulce
chama a atenção para o respeito do Código de Postura, que é tão claro a
respeito.
Antiguidade
x Modernidade
Prédio que pegou fogo na Cidade Velha - Foto arquivo pessoal |
Mas, a
modernidade não deve chegar no bairro mais antigo de Belém? Dulce afirma que é
possível, sim. “Modernidade quer dizer também educação. É difícil conviver com
mal educados; aqueles que ignoram as leis e consequentemente o direito dos
outros”. “A modernidade, segundo ela, não prevê a visão só do seu umbigo ou de
abusos. A modernidade também produz normas que o nosso povo ignora totalmente, e
isso tem outro nome...”.
Devido a esse
seu espírito combativo e a busca incessante por justiça, Dulce Rocque diz que o
Poder Público não ‘a aguenta mais”. Ela conta que descobre muitas coisas
erradas e reclama mesmo. Já descobriu, por exemplo, modificações absurdas de
leis através de decretos; leis não regulamentadas (quase todas as mais
importantes), funcionários que não conhecem as normas; ruas afuniladas e ruas
com nome errado. “Vemos acontecer absurdos no Centro Histórico com a
autorização dos órgãos que deveriam defender, não somente nosso patrimônio, mas
a orla, o meio ambiente e, assim por diante”, esbraveja.
Um exemplo,
considerado absurdo é o estreitamento da rua Félix Rocque, na orla da Cidade
Velha, que está sendo denunciada no blog da Ong CiVViva desde abril de 2013,
apesar da obra ter sido autorizada. “Em alguns casos parece que estamos no ‘tempo
do rei’ quando ele decidia o que bem entendia e quando bem queria...temos
alguns reizinhos, ainda...A Idade Média parece que não acabou por aqui”, afirma Dulce. Para
ajudar a combater essa “antiguidade da Idade Média”, a defensora da Cidade
Velha conta com uma aliada: a internet. A CiVViva tem dois blogs, twiter,
facebook e, contra a vontade dela, o whatsApp. “Não podemos esquecer das
pesquisas feitas com ajuda do google”, completa.
Soluções
para a Cidade Velha
Apesar dos
problemas na Cidade Velha, como amenizá-los? Dulce afirma que se houvesse
vontade política e cumprimento das leis,
as coisas seriam diferentes. “Por exemplo, a falta de regulamentação da lei do
tombamento facilita a coloração das casas com cores berrantes que nada tem a
ver com a ‘memória’ que a lei pretende salvaguardar”. Outro problema enfrentado
é o aumento no número de automóveis e outros veículos. Essa evolução não foi
acompanhada com a criação de garagens e estacionamentos pela cidade. Além
disso, conta Dulce, o fluxo de trânsito pesado no local, causa trepidação nas
casas, prédios e igrejas. “No caso de lojas, escolas, bares e afins, o
resultado é que colocam cones na frente,
em muitos casos, tirando o direito do morador”.
Dulce Rocque
finaliza dizendo que a melhoria depende muito mais da administração pública, do
que dos moradores. Portanto, é questão de querer e fazer. “O certo é que o
nosso patrimônio continua diminuindo ou sendo substituído por estacionamentos e
ninguém faz nada para evitar isso. Nem quero nem falar da insegurança...Para
amenizar os problemas, já seria um grande passo a frente o respeito das leiss,
mas parece que aqui, ainda, ‘a lei é potoca’”.
Cidade
Velha, um bairro tombado
A Cidade Velha é o
bairro mais antigo de Belém do Pará, onde surgiu a cidade, a
partir do seu descobrimento por Francisco Caldeira
Castelo Branco, em 12 de janeiro de 1616. Possui inúmeros prédios coloniais históricos, com
azulejos portugueses. Suas ruas apresentam nomes de cidades ou
personalidades, principalmente portuguesas e brasileiras, tais como: Av.
Portugal, Rua de Aveiro, Cidade Irmã, Rua de Óbidos, Rua de Breves, Rua
Dr.Assis, Rua Dr.Malcher, Rua Siqueira Mendes, Av. Almirante Tamandaré, Rua
Ângelo Custódio, Rua Félix Roque, Rua Padre Champagnat, Boulervard Castilho
França.
A cidade velha
foi criada, às margens do rio, com a principal função de exportar e importar
borracha na época do Ciclo da borracha. Os casarões antigos da Cidade Velha são
sobreviventes da história da fundação da cidade e do Ciclo da Borracha, que
trouxe muito dinheiro e luxo europeu para Belém, presente até hoje em suas
fachadas e estruturas. São um elo entre a origem da população de Belém e os
dias de hoje.
No bairro está
instalado um complexo turítico que atrai os visitantes: Casa das Onze Janelas, Forte
do Castelo, Palácio Antônio Lemos, Palácio Lauro Sodré e Palacete Pinho. As
Igrejas também chamam a atenção dos turístas: Igreja de Santo Alexandre, Catedral
da Sé, Igreja de Nossa Senhora do Carmo e Igreja de São João Batista. Na área
de lazer, o destaque é para o Mangal das Garças.
* Celso Freire/Revista Pará Mais