Rocque da Cidade Velha - Moradora defende com unhas e dentes o bairro mais antigo de Belém


 
Dulce Rocque nas ruas da Cidade Velha - Foto arquivo pessoal

          Como falar do bairro da Cidade Velha sem mencionar Dulce Rosa Rocque. Ela é considerada uma defensora voraz do bairro mais antigo de Belém.  Mas, antes de falar sobre seu trabalho, temos que voltar no tempo. Dulce se formou, em 1967, em Economia pela Universidade Federal do Pará. Dois anos depois foi morar em Moscou, na antiga União Soviética (atual Rússia) para estudar economia política. Teve uma filha na Itália, em 1972. Voltou ao Brasil em 1974, quando sentiu necessidade de colocar em prática tudo aquilo que aprendeu no exterior, mas teve que retornar para a Itália, para não perder a guarda da filha. Lá, nas cidades de Bolonha e Urbino, em 1978, iniciou sua especialização e pós-graduação.


De volta a sua terra natal, Dulce Rocque foi morar na Cidade Velha, o primeiro bairro de Belém. Com seu olhar viajado e crítico, ela notou que o local, que escolheu para residir, estava tendo um aumento considerável no degrado urbano, social e cultural. Isso levou Dulce Rocque a fundar o CiVViva - Cidade Velha-Cidade Viva. O objetivo da Organização Não Governamental era servir como ponto de referência para uma cidadania ativa  e trabalhar em conjunto para encontrar respostas e soluções para os problemas do bairro. “A CiVViva nasce pra defender a Cidade Velha do degrado”, resumiu a economista, que é considerada a defensora do bairro. “Isso porque a defendo com unhas e dentes. Ando com os olhos abertos e vejo o que não está certo. Reclamo a quem de direito”, completa.

Até pouco tempo atrás, o bairro da Cidade Velha era considerado um local tranquilo para se morar. Lá residem moradores antigos, muitos que herdaram as casas de seus pais. Poucos são os primeiros proprietários. A maioria é de idosos e poucos são jovens e menos ainda, crianças. A maior parte dos moradores é dos municípios de Ponta de Pedras, Abaetetuba, Cametá, Igarape-Miri, etc. Muitos até votam nessas cidades. O bairro possui inúmeros prédios coloniais históricos, com azulejos portugueses, muitos dos quais tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. O bairro da Cidade Velha faz divisa com o bairro da Campina, regiões popularmente conhecidas por Comércio, devido a predominância quase que exclusiva de lojas, armarinhos, escritórios, cartórios e bancos. Por isso, é comum o movimento de pessoas no bairro diminuir por volta das 18h. O local fica aparentemente tranquilo e deserto. Nos últimos anos, essa tranquilidade vem sendo quebrada, principalmente na época do Carnaval e após a migração das casas de shows para a redondeza.

Carnaval e Casa de shows

Dulce quer paz na Cidade Velha

Antigamente o tradicional Carnaval, com marchinhas e brincadeiras sadias, passavam pela Cidade Velha. Hoje em dia, pode ser considerado um retrocesso. “Retrocesso se pensarmos naqueles que acham que estão em Salvador (BA) e chegam com abadá e carro-som, trio elétrico ou similares, na área tombada, ignorando a necessidade de defender e salvaguardar nossa memória historico-carnavalesca”, rebate a defensora Dulce Rocque.

A fundadora do CiVViva não é contra o Carnaval, mas sugere que, nessa área tombada, deva ser vivido os carnavais paraenses antigos, com bandinha, blocos com mascarados e fantasias, como faz o cantor Eloy Iglesias, o Xibé da Galera e o Kaveira. “Eles defendem a nossa memória carnavalesca e ainda divertem os moradores”, conta. “Levamos tempo para obter o devido respeito ao nosso patrimônio, e ultimamente todos já providenciavam banheiros, defensas para os prédios históricos e a limpeza das ruas e praças”, completou.

Mas este ano foi diferente. O passo foi atrás. A quantidade de abadás e carros-som fazendo barulho nessa área tombada, em frente às Igrejas antigas, foi grande. Dulce Rocque conta que este ano foram autorizados cerca de 14 blocos, e nem todos tocavam música de carnaval. “Teve um sábado que, nos quatro cantos da praça do Carmo, estavam carros tocando ritmos diferentes, que nada tinham a ver com carnaval. Policia Militar, Guarda Municipal ou Semma, vimos bem pouco ou nada”, denuncia a moradora da Cidade Velha.

Se não bastasse o Carnaval barulhento, chegou também as barulhentas casas de shows. Para Dulce, a música até que não atrapalha a vida dos vizinhos. O problema é outro: a falta de estacionamento para os clientes. Os motoristas estacionam nas calçadas de lios (tombadas). “Tudo isso é proibido por lei. De fato as leis falam de ‘geração de direitos para os vizinhos, que podem impedir que o uso nocivo da propriedade alheia lhes afete’”, afirma Dulce, que reclama ainda da falta de fiscalização da Semob, Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana. E a mesma reclamação da economista serve para a Semma, Secretaria Municipal de Meio Ambiente, “que nem quando chamada, aparece para regular o som de bares e outros locais”. Dulce chama a atenção para o respeito do Código de Postura, que é tão claro a respeito.

Antiguidade x Modernidade

Prédio que pegou fogo na Cidade Velha - Foto arquivo pessoal

Mas, a modernidade não deve chegar no bairro mais antigo de Belém? Dulce afirma que é possível, sim. “Modernidade quer dizer também educação. É difícil conviver com mal educados; aqueles que ignoram as leis e consequentemente o direito dos outros”. “A modernidade, segundo ela, não prevê a visão só do seu umbigo ou de abusos. A modernidade também produz normas que o nosso povo ignora totalmente, e isso tem outro nome...”.

Devido a esse seu espírito combativo e a busca incessante por justiça, Dulce Rocque diz que o Poder Público não ‘a aguenta mais”. Ela conta que descobre muitas coisas erradas e reclama mesmo. Já descobriu, por exemplo, modificações absurdas de leis através de decretos; leis não regulamentadas (quase todas as mais importantes), funcionários que não conhecem as normas; ruas afuniladas e ruas com nome errado. “Vemos acontecer absurdos no Centro Histórico com a autorização dos órgãos que deveriam defender, não somente nosso patrimônio, mas a orla, o meio ambiente e, assim por diante”, esbraveja.

Um exemplo, considerado absurdo é o estreitamento da rua Félix Rocque, na orla da Cidade Velha, que está sendo denunciada no blog da Ong CiVViva desde abril de 2013, apesar da obra ter sido autorizada. “Em alguns casos parece que estamos no ‘tempo do rei’ quando ele decidia o que bem entendia e quando bem queria...temos alguns reizinhos, ainda...A Idade Média parece que  não acabou por aqui”, afirma Dulce. Para ajudar a combater essa “antiguidade da Idade Média”, a defensora da Cidade Velha conta com uma aliada: a internet. A CiVViva tem dois blogs, twiter, facebook e, contra a vontade dela, o whatsApp. “Não podemos esquecer das pesquisas feitas com ajuda do google”, completa.

Soluções para a Cidade Velha

Apesar dos problemas na Cidade Velha, como amenizá-los? Dulce afirma que se houvesse vontade política  e cumprimento das leis, as coisas seriam diferentes. “Por exemplo, a falta de regulamentação da lei do tombamento facilita a coloração das casas com cores berrantes que nada tem a ver com a ‘memória’ que a lei pretende salvaguardar”. Outro problema enfrentado é o aumento no número de automóveis e outros veículos. Essa evolução não foi acompanhada com a criação de garagens e estacionamentos pela cidade. Além disso, conta Dulce, o fluxo de trânsito pesado no local, causa trepidação nas casas, prédios e igrejas. “No caso de lojas, escolas, bares e afins, o resultado  é que colocam cones na frente, em muitos casos, tirando o direito do morador”.

Dulce Rocque finaliza dizendo que a melhoria depende muito mais da administração pública, do que dos moradores. Portanto, é questão de querer e fazer. “O certo é que o nosso patrimônio continua diminuindo ou sendo substituído por estacionamentos e ninguém faz nada para evitar isso. Nem quero nem falar da insegurança...Para amenizar os problemas, já seria um grande passo a frente o respeito das leiss, mas parece que aqui, ainda, ‘a lei é potoca’”.


Cidade Velha, um bairro tombado

A Cidade Velha é o bairro mais antigo de Belém do Pará, onde surgiu a cidade, a partir do seu descobrimento por Francisco Caldeira Castelo Branco, em 12 de janeiro de 1616. Possui inúmeros prédios coloniais históricos, com azulejos portugueses. Suas ruas apresentam nomes de cidades ou personalidades, principalmente portuguesas e brasileiras, tais como: Av. Portugal, Rua de Aveiro, Cidade Irmã, Rua de Óbidos, Rua de Breves, Rua Dr.Assis, Rua Dr.Malcher, Rua Siqueira Mendes, Av. Almirante Tamandaré, Rua Ângelo Custódio, Rua Félix Roque, Rua Padre Champagnat, Boulervard Castilho França.

A cidade velha foi criada, às margens do rio, com a principal função de exportar e importar borracha na época do Ciclo da borracha. Os casarões antigos da Cidade Velha são sobreviventes da história da fundação da cidade e do Ciclo da Borracha, que trouxe muito dinheiro e luxo europeu para Belém, presente até hoje em suas fachadas e estruturas. São um elo entre a origem da população de Belém e os dias de hoje.

No bairro está instalado um complexo turítico que atrai os visitantes: Casa das Onze Janelas, Forte do Castelo, Palácio Antônio Lemos, Palácio Lauro Sodré e Palacete Pinho. As Igrejas também chamam a atenção dos turístas: Igreja de Santo Alexandre, Catedral da Sé, Igreja de Nossa Senhora do Carmo e Igreja de São João Batista. Na área de lazer, o destaque é para o Mangal das Garças.

 * Celso Freire/Revista Pará Mais