O Patrimônio Imaterial ainda não é um
termo tão conhecido dos brasileiros. Mas o Norte do país é guardião de grandes
riquezas desse patrimônio. Só na região são 14 bens reconhecidos como
Patrimônio Cultural do Brasil dentre eles o Bumba meu Boi de Parintins e o
Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (AM), o Sistema dos Povos Karajás
(TO), além do Círio de Nossa Senhora de Nazaré (PA) e da Arte Gráfica dos
Wajãpi (AP), ambas manifestações consideradas também Patrimônio da Humanidade.
Fato é que, mesmo que este termo não seja tão conhecido, o patrimônio imaterial
é intensamente construído e vivido pelos seus praticantes e é o resultado dos
mais preciosos valores da humanidade. Pelos cinco sentidos a imaterialidade se
materializa. Os cheiros e sabores tão presentes no fazer o queijo mineiro, na
cajuína piauiense ou no acarajé da baiana trazem um tempero comum: os saberes
ligados aos seus fazeres tradicionais.
O toque das mãos pode ser suave na
confecção da renda irlandesa e na produção das cuias indígenas, ou firmes nas
palmas de uma roda de capoeira. A audição é agraciada com os mais diversos
tipos de batuques dos maracatus, sambas ou carimbó, e o corpo, sem perceber,
acompanha o movimento histórico da ancestralidade. Já a visão, embevecida com a
manifestação do teatro de bonecos, ou nos versos de um cordel, brilha no
transitar das feiras ou no encantamento de rituais e celebrações.
E toda a diversidade dessa riqueza
cultural, reconhecida mundialmente, ganhou, há 20 anos, um marco importante na
sua história. Em 04 de agosto de 2000, o Decreto 3.551 era instituído e
reforçava os direitos culturais ao apresentar uma política pública voltada para
a identificação, reconhecimento, apoio e fomento ao Patrimônio Cultural
Imaterial. Desde então, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan), junto com diversos parceiros da sociedade, tem executado a
Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial que vem documentando,
promovendo, preservando e valorizando, cada vez mais, as referências culturais
dos mais variados grupos formadores da sociedade brasileira, por meio do
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI).
Ao longo de duas décadas de atuação, 48
bens já foram registrados como Patrimônio Cultural do Brasil; sendo seis deles
considerados pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. E
para cada um desses bens – que detêm continuidade histórica, possuem relevância
para a memória nacional, são transmitidos de geração a geração e constantemente
recriado pelas comunidades em função de seu ambiente, sua interação com a
natureza e sua história – são desenvolvidas ações de salvaguarda que viabilizam
a melhoria das condições de sustentabilidade dos saberes e práticas culturais.
Também completando 20 anos, está o
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) que traz cerca de 160
pesquisas sobre territórios e bens culturais em todas as regiões do país. Ainda
em 2020, também se celebra os 10 anos do Inventário Nacional da Diversidade
Linguística (INDL), que já reconheceu sete línguas como Referência Cultural
Brasileira, sendo seis indígenas e uma de imigração. Todo este trabalho tem
como objetivo buscar o engajamento dos detentores para a gestão e
sustentabilidade de suas práticas, uma vez que o Patrimônio Cultural é um
importante ativo para o desenvolvimento econômico e social.
Referência para o Mundo
A Política de Salvaguarda do Patrimônio
Imaterial é exemplo e inspiração para o mundo, pois o Decreto 3.551 de 2000 foi
influência direta para a elaboração da Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial, aprovada em 2003 pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o primeiro instrumento
internacional sobre o tema.
A experiência do Brasil também foi
determinante para a criação do Centro Regional para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial da América Latina e Caribe (Crespial), que reúne 16 países
da região. Em âmbito nacional, diversos estados e municípios também têm se
baseado na política federal como fundamento e inspiração para a elaboração das
legislações locais e a tarefa de expandir os princípios e diretrizes dessa
política é um atual desafio.
Trajetória
Foi o intelectual e poeta paulistano
Mário de Andrade quem deu início à reflexão sobre manifestações culturais que,
décadas mais tarde, viriam a ser entendidos como “patrimônio imaterial”. Ainda
em 1936, Mário de Andrade afirmava que o Patrimônio Cultural da nação
compreendia muitos outros bens além de monumentos e obras de artes. A partir
dos anos 50, vários intelectuais e defensores da cultura popular se mobilizaram
em torno da Comissão Nacional de Folclore, criada em 1947, e esse movimento foi
base para a criação, em 1958, da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro que
deu origem ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, hoje incorporado
ao Iphan, que se dedicou à preservação da cultura popular e do folclore ao
longo destas décadas.
Nos anos de 70 e 80, a proposta de Mário
de Andrade e as bem sucedidas experiências dos folcloristas serviram de
inspiração para as experiências desenvolvidas no Centro Nacional de Referência
Cultural (CNRC) e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), sob a liderança do
pernambucano Aloísio Magalhães. Essas experiências tinham como pressuposto a
ideia de que “a comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio”, o que
implicava trabalhar em contato com as populações locais, prática desenvolvida
com mais afinco a partir dos anos 80.
Essas ações e a reflexão sobre a
importância dos bens culturais imateriais como referências fundamentais para
vários grupos formadores da sociedade brasileira contribuíram para sensibilizar
o Congresso Nacional a incluir o tema, de maneira contundente e afirmativa, no
artigo 216 na Constituição Federal, promulgada em 1988. Contudo, apenas em
novembro de 1997, as orientações contidas na Constituição resultaram em uma
ação mais efetiva consolidada na Carta de Fortaleza. Nela recomendavam-se ao
Estado brasileiro o aprofundamento do debate sobre o conceito de patrimônio
imaterial, formas e estratégias de preservação, e o desenvolvimento de estudos
para a regulamentação do instrumento legal do Registro , instituto jurídico de
reconhecimento de bens culturais dessa natureza.
E assim, nasceu o Decreto 3.551/00, que
regulamentou o art. 216, § 1º, da Constituição Federal, disciplinando o
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o Patrimônio
Cultural Brasileiro e criando o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.